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The Act of Killing – O Ato de Matar


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Existem absurdos no mundo que até são difíceis de acreditar. Mas daí surgem filmes como The Act of Killing, que conseguem mergulhar na crueldade humana revelando toda a sua capacidade. Assistir a assassinos “institucionalizados” e aceitos pelos poderosos, ou seja, nunca punidos por seus crimes, revisitando os próprios delitos, é algo assustador. Não apenas porque as histórias das vítimas são dramatizadas, mas por todo o contexto que cerca estes criminosos.

A HISTÓRIA: Em um belo cenário, um monumento enorme de um peixe. Da boca dele, saem algumas belas mulheres vestidas de dourado. Corta. Na frente de uma cascata, dois homens gesticulam – um vestido todo de preto, outro, com um vestido azul. Ao redor deles, dançarinas vestidas de vermelho e branco. O diretor incentiva os personagens em cena em “encarnar” a paz e a alegria. Eles devem “atuar” bem, afinal, nada daquilo é uma “farsa”. Corta.

O filme mostra uma cidade e explica que, em 1965, o governo indonésio foi deposto pelos militares. Qualquer opositor ao sistema poderia ser considerado comunista e morto. Entre eles, estavam integrantes de sindicatos, camponeses, intelectuais e imigrantes chineses. Quando os documentaristas encontraram alguns dos assassinos da época, eles contaram com orgulho o que fizeram. Daí eles foram desafiados a recriar as cenas de matança à sua própria maneira – o que vemos nesta produção.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a The Act of Killing): Esta produção acerta na mistura da farsa e da realidade. Aquelas cenas iniciais, belas e líricas, contrastam totalmente com a história dos principais personagens do filme. Anwar Congo e Herman Koto lideram os personagens neste documentário que parece até um conto de terror.

O primeiro é o “personagem principal”. Congo foi um dos executores incentivados pelos militares que tomaram o poder na Indonésia em 1965. Matou, segundo as suas próprias palavras, “milhares” de comunistas. Deveria matar até dezenas por dia. Koto é um gângster e líder paramilitar. Também torturou e matou, e segue buscando o poder e a extorsão das pessoas.

Os dois são bandidos, da pior espécie, mas acabem sendo respeitados e temidos por pessoas poderosas e simples. E conforme a história vai se desenvolvendo, parece cada vez mais difícil separar a fantasia da realidade. Porque o terror imposto por aqueles e por outros homens é tão absurdo que você fica pensando o quanto daquilo pode ser verdade ou quanto foi aumentado para “formar os personagens”.

Afinal, tanto Congo quanto Koto parecem embarcar na ilusão de serem “famosos”, de dramatizarem as próprias histórias para que o mundo conheça o ponto de vista deles. Mas a questão é que eles revelam tantos detalhes sobre as torturas e os assassinatos e explicam “racionalmente” a própria “filosofia” de bandidos que vai ficando cada vez mais difícil achar que há mais fantasia que a dura realidade por ali.

Os diretores Joshua Oppenheimer e Christine Cynn souberam conduzir as entrevistas e as dramatizações com maestria. Pouco a pouco, Congo, Koto e Adi Zulkadry, este último um “companheiro” de extermínios do “protagonista” em 1965, vão contando e “mostrando” os detalhes do que fizeram. Percebe-se que Congo se sente pressionado por pesadelos e lembranças do passado. Mas esse possível remorso não faz parte da rotina de Koto ou de Zulkadry. Este último mesmo, vive uma vida confortável e acredita que fez o que era certo ao matar inúmeros “comunistas” no passado.

E daí tem a reflexão dos realizadores do filme sobre o papel de diferentes “agentes sociais” naquele genocídio que, segundo o texto de introdução da história, teria matado “mais de um milhão de ‘comunistas'” em menos de um ano de ação de paramilitares, gangsteres e do exército golpista na Indonésia. É de arrepiar que, não apenas os “políticos” e os homens que estão no poder batem palmas para os assassinos, mas que fez parte daquele cenário de torturas e assassinatos figuras como Ibrahim Sinik, editor responsável por um grande jornal do país.

Sinik não atacava os comunistas apenas pelo jornal, mas também atuava na “escolha” de quem iria morrer – após interrogatórios e a proteção de assassinos como Congo e Zulkadry. Assustadora também a organização Pancasila Youth, que dissemina o ódio contra “comunistas” – que, como aquela introdução do filme bem define, poderia ser qualquer pessoa que se dizia contra o governo. O líder deles, Yapto Soerjosoemarno, segue a linhagem dos piores chefes de gangsteres do mundo. Ele comanda um exército que extorque comerciantes e empresários de todos os tipos e vive a “boa vida” de quem sabe meter medo nos outros. Vergonhoso.

Interessante também como o filme conduz os personagens a mostrar alguns dos locais onde os absurdos eram feitos e de como a produção revela o papel de “convencimento” realizado pela “indústria da informação” – incluindo um filme anticomunista que as crianças de todas as idades eram obrigadas a assistir uma vez por ano, pelo menos, segundo Congo.

The Act of Killing inova na narrativa, ao explorar as histórias dos assassinos além dos tradicionais “depoimentos” para as câmeras e entrevistas com os realizadores. Aqui, Congo, Koto e Zulkadry, ao lado de outros “ajudantes”, recriam a própria história. E isso mexe com a percepção deles sobre o que eles fizeram. Figuras como Zulkadry questionam a ideia do filme – porque ela “remexeria” em histórias que não seriam interessantes de serem remexidas. Figuras como Koto parecem interessadas na fama. Enquanto Congo, este sim aparentemente mais “mexido” com o passado – através de pesadelos e/ou lembranças -, acaba sendo o mais afetado por aquele processo de recriação dramático.

Esta produção, ao buscar a dramatização dos personagens diretamente envolvidos nos fatos do que aconteceu no passado, mostra também a potência da arte para mexer com histórias, recriá-las e provocar a revisão do que foi feito. Ainda assim, e isso pode até parecer desconfiança crônica, eu fiquei em dúvida sobre a sinceridade de Congo. De fato ele estava tendo uma crise de consciência e se arrependendo do que fez, repensando os próprios atos, ou apenas “atuando” no filme que gostaria de ter feito para terminar como um personagem “do bem” no fim das contas?

Questiono a capacidade de pessoas que fizeram tantas barbaridades de conseguirem sentir arrependimento de verdade. Será que Congo de fato refez o próprio caminho e, ao ser “torturado”, sentiu-se na “pele” das vítimas – algo acertadamente questionado pelos realizadores – ou é mais sincera a postura de Zulkadry, que segue a vida tranquilamente e sem qualquer peso na consciência?

The Act of Killing acerta na narrativa e na forma de provocação. Mas achei a produção longa demais e um tanto repetitiva. Há trechos um tanto desnecessário. Por exemplo, não entendi completamente a razão de repetir tantas cenas “líricas” e com dançarina, ou mesmo dar espaço para os “protagonistas” brincarem de cowboys ou outros personagens.

Na verdade, achei quase uma afronta aquelas sequências. Talvez esta tenha sido a intenção dos realizadores: provocar o espectador com esta “cara-de-pau” dos bandidos a ponto de embrulhar o nosso estômago. De pensarmos o quanto absurdo pode ser o ser humano. Algo é certo: eles atingem o objetivo. Mas para ser melhor, The Act of Killing deveria ser mais curto e menos repetitivo. Ir mais direto ao ponto, e buscando outros pontos de vista – o que não faria mal para a produção.

NOTA: 8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Este é um documento impressionante sobre a capacidade de alguns humanos em provocar dor nos outros. De como podemos ser cruéis e praticar atos absurdos. Chega a ser assustador. E para isso, The Act of Killing não mostra um ato violento, apenas a “encenação” deles. E acaba sendo muito efetivo no repúdio, especialmente quando mostra os assassinos tão confiantes e orgulhosos sobre o que fizeram.

Este é apenas o terceiro filme do diretor Joshua Oppenheimer, nascido no Texas em 1974. Antes, ele dirigiu a The Entire History of the Louisiana Purchase, de 1998, e a The Globalisation Tapes, um documentário em vídeo de 2003 que ele fez ao lado de Christine Cynn – com quem assina também The Act of Killing. Cynn, por sua vez, trabalhou apenas nesta duas produções.

Como a produção mesmo sugere, The Act of Killing foi totalmente rodado na Indonésia, na cidade de Medan, capital da província da Sumatra Setentrional – localizada no costa nordeste a ilha de Sumatra. Com 265,1 quilômetros quadrados, a cidade tinha pouco mais de 2 milhões de habitantes em 2010. Aliás, a Indonésia é um país com uma população que chega a assustar. O último dado disponível aponta que o país tinha 246,9 milhões de habitantes em 2012. Para comparar com o Brasil, teríamos por aqui 23,6 habitantes por quilômetro quadrado no país, enquanto na Indonésia a proporção é de 126 habitantes/quilômetro quadrado.

The Act of Killing criou algumas reações extremas pelos locais por onde passou. Um espectador que viu o filme no Festival de Berlim disse que o diretor Joshua Oppenheimer tinha feito o mesmo que colocar “um dos oficiais da SS nazista recriando o Holocausto”. O diretor respondeu ao espectador dizendo que não considerava a comparação adequada porque “os nazistas já não estão no poder”, enquanto os membros do esquadrão da morte mostrados no documentário ainda estão sendo protegidos pelo governo da Indonésia.

Agora, uma curiosidade interessante sobre esta produção. Além de Oppenheimer e Cynn, aparece nos créditos de direção do filme o nome de “Anônimo”. Há uma explicação para isso. O codiretor do filme e pelo menos outros 20 participantes da equipe de filmagem são creditados como “Anônimos” porque eles ainda temem a vingança dos assassinos dos esquadrões da morte.

The Act of Killing estreou em agosto de 2012 no Festival de Cinema de Telluride. Depois, o filme participaria de outros 20 festivais, incluindo os de Toronto e Berlim. Nesta trajetória, o filme conseguiu a marca impressionante de 28 prêmios – e foi indicado, ainda, a outros 10. Entre os que recebeu, destaque para os de Melhor Documentário e o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim; Melhor Documentário no European Film Awards; e por ter aparecido no Top Five Documentaries no National Board of Review – ao lado de 20 Feet from Stardom, After Tiller, Casting By e Al Midan (também conhecido por The Square).

O filme de Joshua Oppenheimer, Christine Cynn e o “Anônimo” teria custado US$ 1 milhão. Nas bilheterias dos Estados Unidos, o filme conseguiu pouco mais de US$ 451 mil até o dia 1 de dezembro. Ou seja, falta avançar mais para conseguir pagar as despesas e ter lucro.

Os usuários do site IMDb deram a nota 8,2 para esta produção. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 121 textos positivos e apenas cinco negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 96% – e uma nota média de 8,7. Este é um dos raros exemplos em que a minha avaliação final acabou rendendo uma nota menor que a vista nestes sites – pelo visto, The Act of Killing realmente “me cansou” mais do que deveria. 🙂

Da parte técnica do filme, vale mesmo destacar a direção de Oppenheimer, Cynn e do “Anonymous”. No mais, competente a edição de Nils Pagh Andersen, Erick Andersson, Charlotte Munch Bengtsen, Janus Billeskov Jansen, Ariadna Fatjó-Vilas e Mariko Montpetit.

Este filme é uma coprodução da Dinamarca, Noruega e Reino Unido.

Meus bons leitores, vocês devem ter notado que “reduzi” o ânimo de publicações nesta semana. É que final de ano é tempo de festas familiares, encontro com amigos… e menos tempo para ver filmes. Mas prometo que voltarei com as publicações normais até o final da primeira quinzena de janeiro. E já na contagem regressiva para o Oscar. Sigam por aqui que eu também tentarei manter este espaço com alguma atualização. 🙂 E claro, um excelente, maravilhoso e cinematográfico 2014 para todos e cada um de vocês!

CONCLUSÃO: Difícil assistir a este filme. Primeiro, porque ele é longo demais. Depois, porque é assustador ouvir aos torturadores e assassinos recriando o que eles fizeram com a maior naturalidade e teatralidade. Eles pareciam se divertir na maior parte do tempo. E como isso seria possível? Impressionante a crueldade, assim como o contexto social que fez toda a barbaridade ser “justificada” no passado, quando aconteceram, e seguirem sendo justificadas agora. Mas tão absurdo quanto saber os detalhes do que eles fizeram é ver o discurso que justificou a matança e a ânsia dos criminosos pelo “estrelato”. A maioria deles se sente não apenas intocável, mas também “artista” por fazer um filme que mistura resgate histórico e fantasia. Assustador. E interessante, também, como a arte pode ser redentora e tocar algumas pessoas no processo – ainda que, infelizmente, não a todos.

PALPITES PARA O OSCAR 2014: Ainda é cedo para falar sobre as chances de The Act of Killing no maior prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Afinal, segundo a própria Academia, The Act of Killing está disputando com outras 14 produções uma das vagas entre os documentários que aparecem na lista final de indicados atrás de uma estatueta dourada.

Da lista de 15 produções que estão nesta reta final, assisti apenas a Stories We Tell (comentado aqui) e Blackfish (comentado aqui). Entre estas três produções, vejo bastante inovação em Stories We Tell e um bocado de coragem e importância social em Blackfish. The Act of Killing também apresenta certa inovação e algum interesse de resgate histórico – e consequente importância social. Mas entre os três, prefiro – nesta ordem – Stories We Tell e Blackfish.

Há outros filmes na disputa que parecem muito interessantes. Destaco, da lista, The Armstrong Lie, Dirty Wars, o elogiado Tim’s Veermer, The Square e God Loves Uganda. Mas como não assisti a nenhum deles, sou puro palpite… acho que The Act of Killing, apesar de bem premiado até o momento, não tem muitas chances de levar a estatueta dourada. Mas até pode chegar na lista dos cinco finalistas pela forma com que provoca o espectador e os entrevistados. Logo veremos…

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

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