O sangue latino representado em uma profusão de desejos, de libido e de algumas taras. Kiki, El Amor Se Hace resgata um cinema espanhol que há tempos não tínhamos o prazer de assistir. Um filme que fala sobre tesão, sobre sexo e sobre amor através de várias histórias cheias de humor, irreverência e com uma mistura de origens que representa bem o nosso tempo. Um filme delicioso, picante e um bocado provocador. Uma delícia, destas que quem conheceu Almodóvar em sua fase inicial tinha saudade de assistir.
A HISTÓRIA: O casal Natalia (Natalia de Molina) e Alejandro (Álex García) se devoram em várias sequências provocadoras. Algumas partes das cenas de sexo são substituídas por reações de animais e por outros objetos. No final, Alejandro pergunta como foi o sexo. O quanto ele foi bom. Natalia parece um pouco irritada com o questionamento e fala que estava pensando na semana passada, quando foi assaltada no posto de gasolina. Ela fala para o namorado que gozou quando foi rendida pelo assaltante. Alejandro fica perturbado quando ela diz que aquele foi o maior orgasmo que ela já teve. Nesta história, conhecemos não apenas a harpaxofilia (excitação causada ao ser vítima de um roubo), mas outras “filias” (excitações e maneiras de chegar ao orgasmo) apresentadas por outros casais que vivem em Madrid.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes desta produção, por isso recomendo que só continue a assistir quem já viu a Kiki, El Amor Se Hace): Que saudades de filmes como este! Produções que não tem pudor ao tratar de algo tão natural para a nossa raça humana – e para todas as raças, na verdade, como bem demonstra as cenas de abertura desta produção – como é o sexo e a nossa sexualidade. O desejo faz parte da vida e esta produção, acima de tudo, trata de pessoas comuns – certo que algumas com alguns “gatilhos” de excitação bem diferenciados, mas isso faz parte da diversidade que Kiki, El Amor Se Hace quer retratar.
Sexo e desejo são temas onipresentes, assim como o orgasmo, o casamento e o encantamento. Sou suspeita para falar, por ter morado por alguns anos em Madrid, mas esta produção me fez voltar para a capital espanhola por causa de toda a sua verdade. Sim, aquelas pessoas que você está assistindo em cena você encontra em Madrid facilmente. Incrível. Os personagens são ótimos, e os atores… sem eles este filme não teria a qualidade que tem.
Porque fazer comédia não é algo realmente fácil. Especialmente quando falamos de sexo e de sexualidade, o limiar entre fazer algo engraçado e apresentar algo exagerado, machista ou sexista é muito pequeno. É mais fácil errar nas comédias que tratam sobre o tema do que acertar. Ícone do cinema espanhol, Pedro Almodóvar em seu início de carreira soube acertar na comédia e no fetichismo. Mesmo quando exagerava, fazia isso funcionar. Pois bem, como eu comentei lá no início, há muito tempo eu não assistia a um filme com as características de Almodóvar e tão bem feito.
Os espanhóis tem uma maneira de levar a vida e de encarar a vida muito típica. Toda essa “essência latina”, muito espanhola, está presente em Kiki. Isso é uma das qualidades do filme que mais me impressionaram. Os personagens em cena, os seus sotaques, maneiras de agir e de encarar as relações e a vida são muito verdadeiros – como eu citei antes, você realmente encontra pessoas como as que vemos neste filme na Espanha. Com um bocado de facilidade. Por conhecer bem aquela realidade, me deliciei com cada sotaque e com cada personagem.
Sei que a nota máxima abaixo pode parecer um pouco exagerada. Especialmente se você não conheceu muito bem os espanhóis. Mas independente deste fato, acredito que para todos que assistirem este filme o roteiro de Paco León e Fernando Pérez, baseados no filme de Josh Lawson (que escreveu o roteiro e dirigiu The Little Death, lançado em 2014), será uma experiência interessante e divertida em diversos momentos. Afinal, estamos tratando do que é humano, demasiado humano, e sempre que o foco de uma produção é essa, o material rende interesse e inclusive alguns debates.
Para mim, o roteiro de Kiki é delicioso. Ao focar a história em quatro casais – Natalia e Alejandro, Paco e Ana, Candela e Antonio, Paloma e José Luis – e ainda em uma garota solteira que parece meio “deslocada” do padrão (só parece, depois vamos entender a razão dela estar em cena), Kiki consegue fazer um quadro bem interessante das relações humanas. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Natalia e Alejandro estão namorando e ela acredita que ele vai pedir ela em casamento em breve – o que de fato acontece conforme a história avança.
Paco (Paco León, também roteirista e diretor) e Ana (Ana Katz) estão há vários anos juntos e estão em crise. Como eles se gostam, ante de se separarem, eles decidem fazer terapia de casal. E é aí que eles começam um longo processo para reavivar a relação. Candela (Candela Peña) e Antonio (Luis Callejo) estão há bastante tempo juntos, caíram um bocado na rotina, especialmente porque ela tenta engravidar há algum tempo e não consegue. Paloma (Mari Paz Sayago) e José Luis (Luis Bermejo) estão casados também há bastante tempo, mas o casamento mudou – e o sexo terminou – quando ela passou a se locomover em uma cadeira de rodas.
Todos os casais tem momentos ótimos. Honestamente, não consigo dizer qual é o mais interessante – achei todos muito bem interpretados e cada um deles com um nível de profundidade e característica diferente. Sem dúvida alguma o casal Paloma e José Luis é o mais “lírico” e com uma pegada menos divertida e mais sensível. Paco e Ana vivem as situações mais inusitadas porque são mais jovens e estão mais “abertos” a experimentar. Candela e Antonio são muito interessantes porque eles tem um pouco mais de idade e se parecem muito com os espanhóis do interior e/ou que vivem nas “afueras” da capital.
Ainda que todos os casais sejam humanos, demasiado humanos, e, também por isso, bastante interessantes, e ainda que eles vivam situações cômicas em pelo menos uma parte da história, a sequência que me fez rir de dar gargalhada foi a de Sandra (Alexandra Jiménez) quando ela entrevista Javier (Javier Rey). Essa situação é bastante comum em Madrid, de alguém buscar um companheiro para “compartir piso”. Existem situações como aquela, de fazer “uma entrevista” com o candidato. Então não é difícil se colocar no lugar de Javier ou de Sandra naquela situação. Para mim, o grande momento do filme – ainda que existam várias outras sequências muito boas.
Gosto de filmes que tratam de questões do dia a dia de forma tão franca e natural. E olha que em Kiki existem várias “filias” inusitadas – muito bem apresentadas pelo diretor, aliás. Então temos a parte curiosa da sexualidade e do comportamento humano e temos também situações e/ou pessoas com as quais nos identificamos. Seja porque temos algo em comum com elas, seja porque já encontramos pessoas parecidas ou vivenciamos situações com algumas daquelas características. Um filme de comédia que consegue criar empatia tem meio caminho andado para o sucesso.
O bacana deste filme é que ele demonstra aquilo que aprendemos na música Paula e Bebeto, do grande Milton Nascimento: qualquer maneira de amor vale a pena/ qualquer maneira de amor vale amar. Kiki mostra justamente a parte divertida e bacana do amor. Não importa os teus gostos, fetiches, o que te dá ou não tesão: todo mundo tem o direito de amar e de ser amado – desde que não agrida ninguém, é claro. Respeitando o outro, tudo vale o esforço e a tentativa. Se as duas pessoas envolvidas estão de acordo, bacana.
Desta maneira que este filme, além de divertir e de informar sobre algumas “filias”, ainda nos mostra que “all you need is love”, como cantavam The Beatles. Ninguém é tão esquisito – e que o diga Sandra – que não merece ser visto com atenção e verdadeiro interesse por alguém. Também existe a história de cada um dos casais que demonstra, bem ao estilo de cada “pareja”, como o amor é capaz de entender e aceitar o que lhe é estranho – novamente, desde que não agrida o outro e que haja sentimento verdadeiro em jogo. No fim das contas, Kiki é um belo filme de amor – com um bocado de “picante” e sem sexo explícito.
Então analisando o roteiro, muito bem escrito, com situações e diálogos interessantes e a comédia no ponto certo, e analisando o elenco, que tem um trabalho irretocável – e isso é bastante raro -, não consigo ver pontos negativos nesta produção. O filme não é brilhante, daqueles que você vai lembrar daqui a 20 anos – quer dizer, acho que não. Mas ele é muito bem acabado. Atento aos detalhes, funciona bem do início ao fim. Não deixa pontas soltas e convence o espectador. Dá para pedir mais? Para o meu gosto, não. Se você quer rir e se divertir, esta é uma boa pedida.
NOTA: 10.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Serei redundante. Para mim, o roteiro e o trabalho dos atores acima da média são o ponto forte de Kiki, El Amor Se Hace. Não é tão simples quando gostaríamos encontrar belos roteiros e atuações todas boas em um filme, especialmente de comédia. Por isso mesmo eu me surpreendi tanto com esta produção. Há tempos eu não via um filme tão bom vindo da Espanha – de qualquer gênero, mas especialmente de comédia.
Enquanto eu assistia ao filme eu não sabia que um dos roteirista e o diretor da produção eram o ator que interpreta o personagem Paco na história. Com uma carreira maior como ator, Paco León também se aventura como roteirista e como diretor. A estreia dele nas duas funções foi feita com a série de TV Ácaros, com seis episódios escritos por ele e exibidos em 2006 e 2007. A estreia no cinema como roteirista e diretor ocorreu em 2012 com Carmina o Revienta. Depois ainda vieram dois curtas e o longa Carmina y Amén. Ou seja, Kiki é o terceiro longa de León como diretor e roteirista. Fiquei curiosa para ver os trabalhos anteriores. Acho que depois de Kiki vale ficar de olho nele.
Também acho que vale conferir o trabalho do roteirista e diretor (e também ator) Josh Lawson que inspirou Kiki. The Little Death tem uma avaliação maior que Kiki no IMDb – 7,1 para o filme de Lawson, enquanto Kiki tem 6,6. Fiquei curiosa para ver o original – que parece ser bem diferente. Falando em avaliações, Kiki recebeu 11 críticas positivas e apenas duas negativas pelos críticos do site Rotten Tomatoes – o que garantiu para o filme uma aprovação de 85% e uma nota média 6. No Rotten Tomatoes o filme The Little Death tem apenas 60% de aprovação – minha vontade de assistir ele já diminuiu um pouquinho. 😉
Gostei do trabalho de todos os atores, mas acho que alguns se destacaram nesta produção. Gostei, especialmente, do trabalho de Alexandra Jiménez, de Natalia de Molina, de Paco León, de Ana Katz e de Candela Peña. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Além deles e dos atores já citados, vale comentar o bom trabalho dos atores coadjuvantes Eduardo Recabarren, que interpreta o terapeuta do casal Paco e Ana; Belén Cuesta, que interpreta Belén, amiga de Paco e que acaba fazendo um triângulo amoroso com ele e Ana; Maite Sandoval ótima como Maite, empregada de Paloma e José Luis; e David Mora como Rubén, surdo-mudo que vive de olho em Sandra.
Da parte técnica do filme, destaco a direção de fotografia de Kiko de la Rica; a edição de Alberto de Toro; os figurinos de Javier Bernal e de Pepe Patatín; e a direção de arte de Vicent Díaz e Montse Sanz.
Kiki El Amor Se Hace estreou no dia 1º de abril de 2016 na Espanha. Depois, o filme participou de cinco festivais. Em sua trajetória, o filme conquistou três prêmios e foi indicado a outros sete. Os prêmios que ele recebeu foram o de Melhor Filme Comédia e o de Melhor Trailer no Prêmio Feroz, na Espanha; e o de Melhor Atriz Coadjuvante para Candela Peña dado pela Spanish Actors Union.
A história de Kiki se passa inteira em Madrid. O filme, de fato, foi rodado na capital espanhola e em locais que fazem parte da comunidade madrilenha, como Navalcarnero, Alcorcón, Torrejón de la Calzada, Villanueva del Pardillo e Las Rozas. Também foram rodadas algumas cenas em Valsaín, que faz parte de Segóvia, distrito de Castilla y León.
Ah, e acho que vale uma curiosidade sobre esta produção. Eu fiquei me perguntando porque o filme se chama Kiki – afinal, não há nenhum personagem com esse nome. Pois bem, ao acessar o site oficial da produção eu fiquei sabendo o porquê deste nome. Segundo o site, “Um bom ‘kiki’ é uma relação sexual sem mais reflexão ou impedimento que fazer o que se gosta, quando, como e com quem lhe interesse para quem o faz: genital, oral, rindo, temendo, cheirando, chupando, apalpando, sem roupa, disfarçados, de pé, deitados, contra uma árvore… qualquer forma que se goste e que se comparta”. Entenderam? Kiki é um bom sexo, sem culpas, sem análise, feito com liberdade. Kiki também é como o site define as “filias”, e dá uma lista delas (algumas vemos no filme): harpaxofilia, erotolalia, dacrifilia, dendrofilia, somnofilia e elifilia.
CONCLUSÃO: Possivelmente a nota que eu dei acima para Kiki, El Amor Se Hace, seja um tanto exagerada. Pode ser. Mas a verdade é que há tempos eu não assistia a um filme espanhol tão bom. Para quem lembra da fase inicial de Almodóvar, como eu disse lá no início, e gostava desta fase, este será um belo achado. Um filme envolvente, bem escrito, com personagens muito bem desenvolvidos e com um grupo de atores escolhido à dedo – e muito competente. Só consegui ver qualidades nesta produção. Até porque ela trata de sexo e amor, dois temas universais, com muita franqueza e sem preconceitos. Uma bela comédia que trata sobre muitos elementos dos nossos dias. Divertido, cumpre bem o seu papel.
2 respostas em “Kiki, El Amor Se Hace – Kiki Love to Love – Kiki: Os Segredos do Desejo”
Oi Alessandra! Onde consigo achar esse filme? Adorei a resenha! 🙂
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Olá Marina!
Antes de mais nada, seja muito bem-vinda por aqui.
Que bom que você gostou do texto. Sobre onde encontrar Kiki, o filme estreou nos cinemas do Brasil na semana passada. Ele está em cartaz em algumas cidades. Se você não tem ele disponível onde você mora, acho que um caminho alternativo é procurar algum lugar em que ele esteja disponível por streaming ou para alugar logo mais.
Abraços e volte por aqui mais vezes, inclusive para comentar sobre outros filmes. Inté!
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