A dor da perda pode não ser administrável. Quando isso acontece, não importa o quanto a pessoa possa ter um olhar generoso sobre os outros ou sobre a vida. O caminho pode ser apenas de ladeira abaixo. Um pouco disso vemos em The Whale. Filme que trata sobre dor, luto, perda, culpa, que nos apresenta diversos momentos angustiantes, mas que não deixa de falar sobre perdão e de ter um olhar esperançoso no final. Trabalho marcante do elenco, especialmente do protagonista.
A HISTÓRIA
Um ônibus aparece em cena, em uma estrada, e para na primeira parte da cena. Ao redor, um campo arado e algumas árvores sem folhas. O ônibus parte, após um homem com uma mala descer. Esse homem caminha pelo canto da estrada puxando a mala com rodinhas. Corta. Um homem comenta com um grupo de alunos que, como ele comentou no dia anterior, eles devem concentrar-se mais nas frases de tópico. Ele comenta que muitos alunos são rápidos demais em dar exemplos nos parágrafos principais. Vemos uma tela da universidade Dakley com imagens de diversos alunos, mas o instrutor está sem imagem. O foco da história é esse instrutor, Charlie (Brendan Fraser).
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Whale): Como vale para qualquer outro filme, quanto menos você souber sobre esta produção, melhor. Claro que, com toda a exposição que esse filme teve a partir de suas indicações ao Oscar, e pelo fato de Brendan Fraser ter recebido o Oscar de Melhor Ator por seu trabalho nesse filme, fica difícil alguém não ter visto ao trailer ou a alguma imagem da produção. Difícil também não saber nada sobre ela.
Como sempre, tanto ter visto imagens anteriormente como saber sobre o filme atrapalha a experiência de The Whale. Nada grave e que vá comprometer totalmente a experiência com o filme, é verdade. Mas eu não indico esse caminho. Assim, se você não viu o filme mas chegou nessa crítica primeiro, sugiro deixar para ler sobre The Whale só depois de ver ao filme. E sim, vale assisti-lo. Vai lá e depois volte aqui, ok? A partir deste ponto, destilarei vários comentários que contém SPOILERs da produção.
Uma das primeiras questões que The Whale trouxe para mim foi: o quanto devemos ser gratos por termos no Brasil um sistema único de saúde! Falem bem, falem mal, mas o SUS salva vidas a todo momento, a cada minuto, todos os dias. The Whale mostra claramente o problema de um país – e de seus habitantes – que não tem um sistema público. Sim, pessoas morrem porque não querem ir para hospitais e deixarem dívidas milionárias para seus parentes – ou elas mesmo ficarem com essas dívidas quase impagáveis, caso sobreviverem.
Essa é a primeira questão fundamental desse filme. Afinal, se Charlie tivesse à disposição um sistema público de saúde, duvido muito que ele teria passado pelo que passou. Possivelmente ele, por vontade própria ou por pressão da amiga Liz (a ótima Hong Chau), teria tido um acompanhamento médico decente, evitando que ele chegasse a ter um problema tão grave de insuficiência cardíaca e todos os demais problemas derivados de sua obesidade mórbida e de seu estilo de vida.
Além de The Whale nos fazer refletir sobre isso, sobre a falta de acesso à saúde, que deveria ser um bem universal e o primeiro item na pauta de qualquer governo para oferecer aos cidadãos de um país, o filme nos mergulha em uma história dura, muitas vezes difícil de assistir. Porque nunca é bom, muito menos prazeroso, ver alguém em processo de autodestruição. E é isso que acontece com o protagonista dessa história.
Fica claro, conforme o roteiro de Samuel D. Hunter, baseado em na peça que ele próprio escreveu, é desenvolvido, que estamos vendo pela frente uma história deste tipo. Não existe outra forma de analisar o que está acontecendo com o protagonista. Ele é feliz? Ele sente prazer no que ele faz cotidianamente? Claro que não dá para dizer que ele odeia tudo que acontece ou que ele faz.
Sim, Charlie ama ensinar, gosta de desenvolver talentos, e segue fazendo isso de forma online. Por sua condição física atual, ele não dá aulas de forma presencial e não sabemos ao certo o quanto ele sente falta da sala de aula. Além disso, claro que ele aproveita as pizzas e as outras comidas que ele consome, mas a quantidade e a forma compulsiva como ele consome tudo aquilo nos leva a presumir que trata-se mais de uma compulsão e de uma válvula de escape do que de atos de uma rotina prazerosa.
É angustiante ver alguém sofrendo, tendo consciência que está caminhando para a morte, para seus últimos dias, e procurando ter alguma paz no caminho ao buscar certa proximidade ou reconciliação com quem a pessoa mais sente falta ou com quem considera que deveria fazer isso. Por seu comportamento, Charlie dá a entender que ele próprio se culpa por ter chegado ao ponto em que chegou – de ter obesidade mórbida, estar com insuficiência cardíaca e com a saúde cada vez mais debilitada.
A culpa, não importa como você olhe para ela, é uma desgraça. Nunca ajuda, muito pelo contrário. Nossa herança judaico-cristã que é um verdadeiro peso – você seguindo determinada crença e/ou religião ou não, já que nossas sociedades ocidentais são francamente influenciadas por essa herança. Então sim, Charlie tem a bendita culpa rondando seus dias e suas mordidas. Assim como suas relações.
O triste, além de ver tanta culpa sem sentido no ar, é perceber que tudo isso teve uma única fonte: a dor de uma perda irreparável. Sim, Charlie perdeu seu grande amor. E essa perda passou por culpa, mais uma vez. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Charlie não sabe até que ponto ele foi “culpado” pela morte do ex-companheiro, já que ele foi professor do Alan e os dois se apaixonaram. Mas como o irmão de Liz, que se tornou companheiro de Charlie, foi criado em uma família extremamente cristã, ele não soube lidar com a “culpa” de amar um homem.
(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). O peso das crenças de Alan acaba cobrando um preço muito alto. A culpa torna a vida dele insustentável, ao menos é o que Alan sente, e ele põe fim à própria vida. Essa perda tem um impacto direto e decisivo em Charlie. Como toda a perda, Charlie vive o luto, mas parece que esse é um estágio que não se resolve. Aparentemente, após a perda de Alan, ele mergulha cada vez mais na compulsão por comer. Uma forma de escapar da dor buscando por um prazer que é fugaz e que, claro, cobra um preço quando é consumido de forma exagerada.
O preço que essa busca por escapar da dor cobra de Charlie é uma derrocada progressiva e dolorosa de sua saúde. Ele engorda, muito, começa a ficar recluso, consequentemente deixa de fazer qualquer tipo de exercício físico, fica extremamente sedentário e segue comendo muito além do necessário a cada dia. Liz dá o diagnóstico: ele tem insuficiência cardíaca congestiva e se não for para o hospital, vai morrer até o final de semana.
O filme acompanha, justamente, a semana do protagonista. A narrativa começa na segunda-feira, quando ele tem uma crise, passa mal e é socorrido por um desconhecido, o jovem Thomas (Ty Simpkins), que faz parte da mesma congregação religiosa da família de Liz e que era frequentada por Alan, e termina na sexta-feira, com a última aula que Charlie dá pelo computador e com o desenvolvimento final de sua narrativa com Liz e com a filha dele, Ellie (Sadie Sink).
Para além de nos apresentar uma história de sofrimento, de luto, de perda e de culpa, que é o que vemos em cena na maior parte do tempo quando a narrativa foca em Charlie, The Whale nos apresenta outros aspectos da história do protagonista. Para começar, o amor que ele tem pelo ensino e pela literatura. Isso está presente desde o início do filme. Depois, a vontade que ele tem de tentar resolver algumas das questões que ele tem em aberto e que ele não quer deixar sem solução antes de partir de vez.
Nesse sentido, novamente temos o elemento culpa quando Charlie busca a filha por uma reconciliação. Ele quer ter contato com Ellie antes que o prognóstico de Liz se confirme. Charlie sente-se culpado por ter abandonado a filha quando ela era uma criança. E Ellie não deixa essa culpa menor. Ela fala com todas as letras e inclusive demonstra parte dos efeitos que a ausência do pai provocou.
A relação entre os dois é complicada e, francamente, não tinha como ser diferente. Mas naquela semana, durante o tempo que eles passam juntos, eles conseguem saber um pouco mais um do outro e colocam diversos pingos nos “is” que estavam precisando ser colocados. Nada melhor do que conversas francas e sinceras. Charlie busca por uma escrita sincera e ele encontra isso na filha.
Nesse sentido, The Whale também é um filme sobre redenção. Consciente de que talvez não terá mais muito tempo de vida, Charlie resolve dizer que ama e que se importa com a última pessoa no mundo para quem faltava ele dizer isso com todas as letras. Para além disso, ele tem a sorte de conseguir falar palavras bonitas e mostrar afeto por outras duas pessoas importante para ele: Liz, irmã de Alan, que sempre esteve ao lado do irmão e que seguiu ao lado de Charlie quando Alan se foi; e Mary (Samantha Morton), a ex-mulher de Charlie, com quem ele manteve contato apenas por telefone e com quem ele fala de forma franca e carinhosa uma última vez.
Essa é uma produção sobre despedidas e sobre “passar a vida à limpo” antes da partida. No fundo, Charlie foi um sortudo por conseguir fazer isso. Quantos morrem sem conseguir dizer o que gostariam e fazer o que é importante antes do último suspiro? Nesse sentido, e pela mensagem final da produção, The Whale não é apenas um filme difícil de assistir, duro por tratar sobre autodestruição, mas também é um filme cheio de esperança.
Antes de falar sobre a mensagem final da produção, quero fazer alguns parênteses. Como citei de forma breve anteriormente, a questão do peso que uma crença ou uma religião podem ter na vida de algumas pessoas é um dos subtemas dessa produção. Liz fala com todas as letras como a congregação Nova Vida, da qual Thomas diz fazer parte e que ela conheceu muito de perto porque o pai dela e o irmão faziam parte, fez mal para todas as pessoas que ela conheceu.
Como Liz não é adepta do que a Nova Vida prega e como a congregação atua, ela sempre foi vista como a “ovelha negra” da família. Alan, o irmão dela, era o contrário, chegando a atuar como missionário do grupo. Até que ele próprio virou uma pessoa “desprezível” para a congregação quando ele revelou-se homossexual e passou a viver com Charlie.
Assim como Liz comenta e qualquer pessoa – respeitando sempre as opiniões divergentes – que entendeu o que o cristianismo quer realmente dizer também sabe, não faz o menor sentido alguém ser discriminado, desprezado, rechaçado ou qualquer outra atitude do gênero por ser o que a pessoa é. Ora, se Deus criou a todos e Ele ama a todos, como alguém pode ser julgado por um semelhante e ser discriminado por causa de leituras de partes da Bíblia que depois teriam sido refundadas por Cristo? Quem se diz cristão, não pode concordar com desprezo, exclusão e afins.
A presença de Thomas na história está sempre lembrando o protagonista, Liz e a nós sobre o peso desses julgamentos e como pode ser cruel o desejo de alguns de “catequisar e salvar” os outros. Como Liz diz, em certo momento, referindo-se à Alan, “ninguém salva ninguém”. Nós, humanos, ao menos não. Podemos ajudar, podemos atrapalhar, mas apenas a própria pessoa ou Deus – para quem acredita, claro – podem realmente salvar.
No fim, Charlie confronta Thomas e sua “busca por santidade” e salvamento. Como um cristão que diz querer salvar uma outra pessoa pode sentir nojo e repulsa? Isso faz sentido? Sim, somos falhos, imperfeitos, e deveríamos saber disso antes de querer pregar “salvamento” para quem quer que seja. Esse é um dos subtemas dessa produção.
Outra questão, e que está ligada com essa que acabo de citar, é como The Whale desafia o nosso próprio e olhar sobre o outro. Não acho que seja fácil ou confortável ver Charlie como ele está. A questão evidente sobre isso é porque é perceptível que ele sofre, em muitos momentos, e não apenas com os episódios de ansiedade e falta de ar. Mas quando Charlie questiona Thomas sobre se ele tem nojo dele, ele também está nos questionando sobre isso.
Nesse momento, vale cada um de nós perguntar-se sobre esse tema e sobre a gordofobia. Somos gordofóbicos? E se não somos gordofóbicos, temos algum comportamento ou pensamento que segue a linha da gordofobia? Acho que o filme nos escancara esse questionamento, e isso é importante. Também acho que The Whale nos mostra outra perspectiva e uma leitura mais ampla e completa de alguém que tem obesidade mórbida, contribuindo para que os preconceitos que ainda possamos ter sejam combatidos ou, ao menos, que revistos.
Para além destas questões, The Whale trata sobre a força de uma amizade. É linda a relação de Liz com Charlie, com ela sendo leal a ele e à memória do irmão e tendo muito cuidado com a pessoa que era o amor de Alan. Essa é uma das partes bacanas do filme, assim como a trajetória de reaproximação do protagonista com a filha – algo complicado, truncado, difícil, mas que é possível.
Eis que então chegamos na mensagem final dessa produção. Algo potente, realmente. (SPOILER – não leia se você não viu ao filme). Ellie, afinal, é uma grande promessa de forma positiva ou negativa? Sob a ótica da mãe da garota, Mary, que é quem convive com ela mais de perto desde sempre, Ellie é uma pessoa cruel, que não se importa com os outros. Ela tem, ao menos em teoria, diversos elementos de alerta sobre uma possível futura sociopata ou psicopata. Será?
Sob a ótica de Mary, sim, Ellie preocupa. Ela não teria “sentimentos”, seria capaz de facilmente desprezar o que os outros sentem e ser cruel. Possivelmente, ela estaria “perdida”. A visão de Charlie sobre a filha é totalmente diferente. Ele considera ela maravilhosa, incrível. Essa visão começou a ser construída quando a menina era uma criança, fase em que ele deixou de conviver com ela, e foi ampliada com uma redação e análise crítica que ela fez de Mody Dick e que Mary repassou para Charlie.
Para além daquela redação, que simbolizava, para Charlie, toda a sensibilidade, talento e capacidade da filha, Charlie tem uma visão um tanto romântica da vida. Ele parece ser um sujeito cheio de esperança, de alegria, apesar de não conseguir mais aplicar estes sentimentos na própria vida. Mas ele olha com essa esperança e alegria para a filha. E então temos um dos episódios finais da produção. Mary e Charlie tem visões muito diferentes sobre a real motivação de Ellie na divulgação sobre o paradeiro e a situação de Thomas.
Enquanto Mary acredita que a filha entrou em contato com a congregação antiga de Thomas e com a família dele para expô-lo e ferrá-lo, Charlie está convicto de que a filha queria apenas ajudar Thomas, que não conseguia voltar atrás e retomar os laços que ele considerava perdidos. Então, quem estava certo? Eis que The Whale chega ao seu ápice. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Tanto Mary quanto Charlie tem apenas perspectivas sobre Ellie. A verdade é que o caminho de Ellie é ela quem vai definir. Ela pode dar ouvidos para a mãe ou para o pai. Porque sim, crianças e adolescentes ainda são influenciáveis.
Com isso, The Whale quer nos dizer que sim, importa o que nossos pais nos fazem crer. Se estamos sempre ouvindo que somos pessoas ruins, cruéis e afins, como poderemos ser melhores? Não acho, com isso, que a opinião de um pai ou de uma mãe serão definidoras. Sim, acho que uma pessoa pode, com apoio de muita terapia, superar a “caixa” em que pai e mãe podem ter-lhe colocado. Mas isso não é fácil, nem simples, nem comum de ser feito. Não é impossível, mas talvez seja improvável?
Então sim, mais do que a proximidade que uma mãe e pai possam ter com alguém, pode ser muito definidor a visão que essas pessoas tem da gente. Para mim, essa é uma reflexão fundamental desse filme. Além de todas as outras que eu comentei anteriormente. Acredito que não devemos fechar os olhos para que os filhos fazem, mas talvez devemos ter um olhar um pouco mais compassivo, compreensivo, caridoso e amoroso para eles?
O amor salva, sem dúvidas. Se algo salva, é o amor. The Whale fala sobre isso. Para quem leu a minha crítica até aqui, pode pensar que eu achei esse filme fantástico, perfeito, nota 10, certo? Bem, nem tanto. Acho sim que The Whale tem diversas qualidades e trata de forma interessante todos os temas que comentei anteriormente. É um filme envolvente, bem conduzido, com ótimos atores e que acerta em ter poucos personagens.
Mas ele tem alguns problemas também. Para começar, uma dinâmica e uma narrativa bem previsíveis. Claro, ninguém estava esperando nenhuma reinvenção da roda. Mas incomoda um pouco como a relação entre Charlie e Ellie, em especial, é desenvolvida. Bastante previsível aquela hostilidade sendo transformada, pouco a pouco, em proximidade. A virada de Ellie, nos últimos minutos, acaba sendo um pouco exagerada – assim como toda aquela sequência final.
Sim, mais uma vez o diretor Darren Aronofsky quis fazer uma alegoria sobre a despedida, sobre a partida, fazendo um paralelo entre a narrativa de Moby Dick e do que estava acontecendo com Charlie, mas ele opta por uma hipérbole para fazer isso, com toques bastante exagerados. Ok, chega a ser um pouco lírico. Mas achei um pouco estranho, exagerado para além do que pode ser considerado interessante. Não achei um final horrível, mas também acho que ele tira alguns pontos do filme. Especialmente pela reação de Ellie. Enfim, condução da narrativa bastante previsível, com poucas exceções, e final exagerado. Poderia ter sido melhor.
NOTA
9,2 9.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
Minha gente, muy buenas. Vou voltando, pouco a pouco, a rotina de publicações aqui no blog. Assisti The Whale nessa última semana, finalmente, mas só agora, na finaleira do Domingo de Páscoa, que consigo escrever sobre essa produção. Vou finalizar o conteúdo sem todas essa seção concluída. Espero que vocês me perdoem por isso. Mas prefiro publicar o conteúdo por aqui e atualizar essa seção depois. Beleza?
Voltei, minha gente! Então vou concluir essa seção, como comentei no parágrafo anterior.
Esse é um filme com um protagonista evidente e alguns poucos personagens que orbitam ao redor dele. Verdade que o personagem de Charlie dá pouco “espaço” para o ator Brendan Fraser brilhar. Ele não pode fazer grandes movimentos e não tem muito espaço para agir – literalmente ele não sai de casa. Mas é nos detalhes, especialmente no olhar, que Brendan Fraser faz toda a diferença. O ator consegue nos entregar um trabalho sensível e muito preciso, quase cirúrgico, passando todas as características de seu personagem, mesmo tendo bastante restrição de mobilidade por causa das características físicas de Charlie. Sem dúvida alguma, um trabalho marcante do ator. Ele é o nome do filme.
Além do trabalho de Brendan Fraser, são destaque nessa produção o roteiro de Samuel D. Hunter, que é fundamental para o que vemos em cena, e a direção de Darren Aronofsky. O filme tem seus melhores momentos e seus principais defeitos justamente no trabalho de Hunter. Na maior parte do tempo, acho o roteiro do filme competente porque ele consegue envolver o público em uma narrativa bastante humana e sensível. Mas o mesmo texto apresenta fragilidades, especialmente uma dinâmica bastante previsível e alguns exageros narrativos que chegam a incomodar.
Outro ponto de destaque é a direção de Darren Aronofsky. Não é fácil rodar um filme, basicamente, em um mesmo ambiente. Ótimos exemplos do cinema que vieram antes de The Whale nos mostram isso. Mas Aronofsky consegue apresentar um bom trabalho, explorando todos os ângulos possíveis da casa do protagonista, sem inovar muito nessas escolhas, mas garantindo uma boa dinâmica de enquadramentos e de cortes para tornar a história ágil e envolvente na medida certa – sem exageros, dessa vez.
Um alívio para quem gosta do diretor e para quem, como eu, teve o desprazer de decepcionar-se com o último trabalho de Aronofsky antes desse The Whale, que foi o pretensioso Mother! (comentado nesse link). Caso você não tenha assistido a muitos filmes de Aronofsky e quer saber mais sobre esse diretor, porque eu considero ele um dos melhores de sua geração – Aronofsky tem 54 anos de idade -, recomendo que você comece com o ótimo Pi, filme de 1998; depois avance para Requiem for a Dream, do ano 2000; e, finalmente, assista a Black Swan, de 2010 (o único dos três comentado por aqui no blog). Esses são os três melhores filmes dele.
Enfim, bom ver Aronofsky fazendo uma direção básica, desta vez, mas ao menos apresentando um filme interessante, simples e direto, sem grandes pretensões. Melhor vê-lo novamente com os pés no chão do que com grandes “arroubos criativos” e que poderiam levá-lo, novamente, a nos apresentar algo bastante desastroso. Espero que ele siga nesse caminho, que retorne mais para a realidade e volte para uma grande fase. Estou na torcida para isso – afinal, ganhamos com Aronofsky em boa fase.
A estrela do filme, sem dúvida alguma, é Brendan Fraser. Ao lado dele, vemos alguns atores em papéis secundários. Entre esses atores, o destaque fica com Hong Chau, que nos oferece um trabalho sensível, instigante e marcante como Liz. Ela brilha em cena cada vez que aparece. Literalmente, preenche a tela. Muito bom o trabalho da atriz. Em segundo lugar, depois de Hong Chau, temos como destaque Sadie Sink como Ellie. A atriz faz um bom trabalho como a filha de Charlie, dividida entre a revolta, a curiosidade e a vontade de aproximar-se do pai até há pouco ausente. Ela fez um bom trabalho, mas acho que ela foi um pouco prejudicada pelo roteiro que, até certo ponto, simplifica a personagem de Ellie.
Além dos atores citados, temos outros dois atores que ganham certa relevância na produção. Eles fazem um bom trabalho, quando estão em cena, mas considero que suas entregas ficam um nível abaixo dos outros que citei anteriormente. São eles Ty Simpkins, que interpreta Thomas, o jovem missionário que diz que quer ajudar Charlie, que deseja convertê-lo, mas que, no fim das contas, desempenha mais um papel de quem julga do que de alguém que sabe acolher, aceitar e escutar alguém diferente dele; e Samantha Morton em uma ponta como Mary, ex-mulher de Charlie, mãe de Ellie, e que aparece em uma longa sequência na produção. Ela faz um belo trabalho, como sempre, mas a personagem dela está restrita a apenas uma sequência – por isso ela não ganha grande destaque em The Whale.
A narrativa fica restrita, essencialmente, a esses personagens. O único “agente externo” que ganha algum espaço em The Whale, para além de Charlie, da amiga que sempre vai visitá-lo, da filha, da ex-esposa e do jovem missionário que algumas vezes passa a ir na casa do protagonista, é o entregador de pizza que vai até o local com frequência. Ele sempre fala com Charlie pelo interfone, até que um dia o entregador decide esperar para ver quem é o cliente que compra as pizzas sem nunca aparecer. Naquele breve momento, vemos Dan, interpretado por Sathya Sridharan, aparecer pela primeira vez. Algo breve, mas que representa o “olhar externo” sobre o qual Charlie tem tanto medo – de ser julgado e de ser alvo de repulsa e de uma possível violência oriunda dessa repulsa. Ilustrativo.
Entre os aspectos técnicos da produção, sem dúvida alguma o destaque vai para a equipe envolvida com o Departamento de Maquiagem. O trabalho deles é fundamental para a caracterização do personagem central da história. Vale até citar o nome de todos os profissionais envolvidos nesse trabalho difícil, complexo, e que para a nossa sorte – e da narrativa – acaba sendo exitoso, mostrando um Charlie realista e sem um visual exagerado ou “fake”: Nina Anton, Stephan Ashdown, Mandy Bisesti, Annemarie Bradley-Sherron, Judy Chin, Donald Francis, Chris Gallaher, Adrien Morot, Shane Shisheboran, Jean-François Simard e Kathy Tse.
Além dessa equipe responsável pelo Departamento de Maquiagem de The Whale, o trabalho dos 66 profissionais envolvidos com os Efeitos Visuais do filme foi importante para que a produção tivesse o cuidado técnico necessário. Eles cuidaram dos retoques de cada cena, ajudando o pessoal da maquiagem a cumprir seu objetivo de entregar um trabalho convincente, perfeito, além de terem contribuído com todo a “atmosfera” que o filme apresenta – geralmente meio soturno, com uma abertura para a luz na reta final, como que apresentando a ideia de “libertação” de Charlie.
Nesse sentido, vale também destacar o bom trabalho do diretor de fotografia Matthew Libatique, assim como do editor Andrew Weishblum. Os dois são nomes importantes para, primeiro, termos a atmosfera que o filme apresenta e, segundo, a produção ter o ritmo que ela apresenta. Além deles, vale citar o trabalho de Rob Simonsen na trilha sonora; o design de produção de Mark Friedberg e Robert Pyzocha; a direção de arte de Jurasama Arunchai; a decoração de set de Lisa Scoppa; os figurinos de Danny Glicker; e o trabalho dos assistentes de direção Duccio Fabbri e Alice Johnson.
The Whale estreou em setembro de 2022 no Festival de Cinema de Veneza. Depois, até janeiro de 2023, o filme participou de 20 outros festivais e mostras de cinema, incluindo os festivais de Toronto, Londres, Viena e Thessaloniki.
Em sua trajetória, The Whale recebeu 45 prêmios e foi indicado a outros 116 – números impressionantes para um filme um tanto “alternativo”. Entre os prêmios que recebeu, destaque para duas estatuetas do Oscar: Melhor Ator para Brendan Fraser e Melhor Maquiagem e Cabelo. Vale citar ainda os prêmios de Melhor Ator para Brendan Fraser no Critics Choice Awards; o de Desempenho Excepcional de um Ator em um Papel Principal para Brendan Fraser no Screen Actors Guild Awards; e os prêmios Leoncio d’Oro Agiscuola Award, 10th INTERFILM Award for Promoting Interreligious Dialogue, o Sorriso Diverso Venezia Award para Melhor Filme em Língua Estrangeira e o Premio CinemaSarà Award entregues no Festival de Cinema de Veneza para Darren Aronofsky.
Importante mencionar que, dos 45 prêmios que The Whale recebeu, 25 foram prêmios recebidos por Brendan Fraser como Melhor Ator. Ele não ganhou sempre, é verdade, mas foi o maior ganhador entre os indicados pelo filme. Mesmo tendo sido indicada em vários prêmios por seu papel nessa produção, a atriz Hong Chau ganhou apenas uma vez: ela foi reconhecida como Melhor Atriz Coadjuvante pelo New York Film Critics, Online.
Para além dos prêmios que o filme recebeu, vale comentar que The Whale foi indicado em três categorias do Oscar. Além dos dois prêmios que o filme levou para casa, ele foi indicado na categoria Melhor Atriz Coadjuvante, com Hong Chau concorrendo ao prêmio – em uma categoria que foi vencida por Jamie Lee Curtis. Brendan Fraser também concorreu na categoria Melhor Ator em Filme – Drama no Globo de Ouro, mas ele perdeu o prêmio para Austin Butler, de Elvis.
Agora, vale citar algumas curiosidades sobre essa produção. Para dar vida para Charlie, o ator Brendan Fraser teve que usar um traje protético pesado que ele usava durante horas nos dias de gravações. Em entrevista para a Variety, durante o Festival Internacional de Cinema de Veneza, o ator comentou o seguinte: “Desenvolvi músculos que eu não sabia que tinha. Até senti vertigem no final do dia, quando todos os aparelhos eram removidos; era como descer do cais para um barco em Veneza. Tinha essa (sensação de) ondulação. Isso me deu apreço por aqueles cujos corpos são semelhantes (ao do personagem). Você precisa ser uma pessoa incrivelmente forte, mental e fisicamente, para habitar esse ser físico”.
Achei muito importante e interessante a fala de Fraser. De fato, The Whale nos coloca um pouco no lugar de quem deve viver com aquela condição física. São diversos desafios diários que devem ser enfrentados por eles. Então sim, passamos a ter uma compreensão melhor de quem precisa conviver com um corpo com aquelas características. The Whale nos faz ter mais compreensão sobre isso.
O personagem Charlie é semiautobiográfico. O roteirista e escritor da peça que deu origem ao filme, Samuel D. Hunter, é gay, ensinou redação expositiva na Rutgers University e lutou contra o transtorno da compulsão alimentar periódica.
Para o papel, Brendan Fraser passava quatro horas por dia sendo equipado com próteses que pesavam até 136 quilos. Além desses trajes e equipamentos, o ator preparou-se para o papel consultando a Obsesity Action Coalition e trabalhando com um instrutor de dança durante meses antes do filme começar a ser rodado para entender como ele deveria se mover como Charlie por causa do excesso de peso do personagem.
Ainda que The Whale aborde uma questão que passou a ser bem frequente após o início da pandemia de Covid-19, que foram as aulas online, a história do filme se passa antes da pandemia começar. A história está ambientada em 2016.
Os ensinamentos da New Life Church, bastante citados no filme porque eles eram seguidos pelo pai e irmão de Liz e pelo jovem Thomas, foram emprestados das Testemunhas de Jeová e dos Mórmons Fundamentalistas.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,7 para essa produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no site Rotten Tomatoes dedicaram 213 críticas positivas e 119 negativas para The Whale – o que garante para a produção um nível de aprovação de 64% e a nota média de 6,6. Achei um bocado baixas as avaliações dos críticos, em especial. O site Metacritic apresenta o “metascore” 60 para The Whale, fruto de 26 críticas positivas, de 23 críticas medianas e de oito críticas negativas.
De acordo com o site IMDb, The Whale teria custado cerca de US$ 10 milhões. Um orçamento baixo para os padrões de Hollywood. Segundo o site Box Office Mojo, o filme teria faturado cerca de US$ 54,5 milhões nos cinemas, sendo US$ 17,4 milhões nas bilheterias dos Estados Unidos e o restante em outros mercados nos quais o filme estreou. O segundo mercado em que o filme se saiu melhor nas bilheterias foi no México, onde ele teria faturado US$ 8,7 milhões.
The Whale é uma produção 100% dos Estados Unidos. Por isso, esse filme passa a figurar na lista de filmes que atendem a uma votação feita aqui no blog há tempos.
Eu sabia que tinha esquecido de comentar algo por aqui… então agora sim, farei esse adendo (no dia 12/04). Eu queria citar ótimos filmes que são rodados em um único ambiente. Para quem não assistiu ainda, mais que indico os filmes Rope (1948) e Rear Window (1954), duas obras-primas do gigante Alfred Hitchcock; e Dogville (2003), do geralmente interessante Lars von Trier. Filmes muito, muito interessantes e que merecem ser vistos.
CONCLUSÃO
Um filme interessante, diferente do que costumamos ver no dia a dia de Hollywood. The Whale leva a assinatura de seu diretor, Darren Aronofsky – um dos meus preferidos, ao menos de sua geração, e que se recupera após nos apresentar um trabalho bomba, para dizer o mínimo. Com uma narrativa envolvente, com algumas surpresas pinceladas aqui e ali e uma certa carga exagerada de drama especialmente na reta final, este é um filme que busca o equilíbrio entre boas ideias e ideias batidas. O saldo final é que temos pela frente uma produção bastante humana, na maior parte do tempo angustiante, que trata sobre temas fundamentais ao mesmo tempo que não economiza nas críticas e em algumas reflexões. Tem um elenco enxuto, mas muito competente, e acaba colocando-se na prateleira dos ótimos filmes que se passam em apenas um ambiente (essencialmente).
2 respostas em “The Whale – A Baleia”
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