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Le Scaphandre et le Papillon – O Escafandro e a Borboleta


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A memória e a imaginação. Estas são as únicas coisas que uma pessoa não perde quando continua vivendo, pensando, ainda que enclausurada em si mesma. E isso não é uma metáfora. Falo de estar enclausurada em si mesma literalmente. Lendo assim parece não significar muito, mas pensando a respeito, isso é maravilhoso. A descoberta que Jean-Dominique Bauby faz em determinado momento de sua vida deveria servir de farol para os demais seres viventes, como eu e você. Fiquei pensando sobre isso e sobre tudo que nos conta o filme Le Scaphandre et le Papillon e fiquei arrepiada. Eu diria que, ao lado de Into the Wild, este é o filme que mais está me fazendo pensar nos últimos tempos. E isso porque acabo de assistí-lo, ainda estou “imersa” em suas imagens. Impressionante.

A HISTÓRIA: O filme começa com um homem acordando em uma cama de hospital. Aos poucos ele vai enxergando as pessoas e o ambiente que o circunda, escuta a voz de uma enfermeira e de um outro homem, que pede para que ela chame ao Dr. Cocheton (Gérard Watkins). Descobrimos que o paciente se chama Mr. Bauby – depois saberemos seu nome completo, Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric), e sua profissão… editor da Revista Elle francesa. O médico que entra no quarto explica que Bauby está no Hospital Naval de Berck-Sur-Mer, na costa de Calais, e que foi transferido para lá de Paris. Ele sofreu um derrame e ficou em coma por quase três semanas. Logo ele descobre, através do Dr. Lepage (Patrick Chesnais), que sofre de uma condição muito rara: a Síndrome do Encarceramento. Em outras palavras, ele está paralisado dos pés até a cabeça e não consegue falar. Aos poucos, contudo, ele vai conseguindo progredir com a ajuda da fonoaudióloga Henriette Durand (Marie-Josée Croze) e da fisioterapeuta Marie Lopez (Olatz López Garmendia).

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Le Scaphandre et le Papillon): Enquanto assistia ao filme, me lembrei muito – e acho isso inevitável – de Mar Adentro. O filme estrelado por Javier Bardem e dirigido por Alejandro Amenábar é uma ode à liberdade individual, à escolha de uma pessoa em seguir vivendo – e em que condições ela faz isso. Le Scaphandre et le Papillon também é isso, mas o filme vai além. Ele consegue ser algo parecido a Mar Adentro e, ao mesmo tempo, o seu inverso. Parecido enquanto mostra uma história de privação total de movimentos, enquanto conta a tragédia de dois homens apaixonados pela vida. Mas as semelhanças terminam por aí. Porque Le Scaphandre et le Papillon mostra uma decisão totalmente contrária a de Ramón Sampedro, já que Jean-Dominique Bauby decide pela vida e não pela morte. Dentro de seu “escafandro” ele descobre uma outra maneira de sentir e refletir sobre a vida. E mais: decide mergulhar nela, aproveitá-la com ironia, sarcasmo e deixando um testemunho belíssimo e comovente. Esse testemunho foi publicado primeiro em livro e, depois, virou este filme igualmente belo e impressionante – o curioso é que Sampedro também publicou um livro sobre sua experiência e seu ponto de vida sobre continuar ou não a viver.

A primeira característica que me chamou a atenção de Le Scaphandre et le Papillon foi a narrativa em primeiríssima pessoa no início. Literalmente nos colocamos por “detrás” dos olhos do protagonista, escutando o que seus pensamentos lhe diziam enquanto sua voz não saia, assim como presenciando tudo que lhe ocorria ao redor. Impressionante, nesta parte do filme, a direção de fotografia extremamente técnica e bem-feita de Janusz Kaminski (este polonês talentosíssimo que trabalhou em muitos filmes com Steven Spielberg) e o trabalho do diretor Julian Schnabel. Só bem depois é que a câmera sai da posição de “olhos-do-protagonista” para mostrar outros ângulos da realidade – e transportar-se também no tempo e no espaço. Muito interessante esta narrativa – aliás, o roteiro de Ronald Harwood baseada na obra homônima de Bauby é outro ponto forte do filme.

Além da narrativa em primeira pessoa, o filme ganha muitos pontos por seu elenco afinado e regular. Ninguém se desponta muito, mas todos fazem um trabalho inspirado. Além de Mathieu Amalric como Bauby, destaco Marie-Josée Croze e Olatz López Garmendia como as belíssimas e competentes médicas Henriette e Marie, respectivamente. Merece um capítulo a parte a interpretação de Emmanuelle Seigner como Céline Desmoulins, a ex-mulher de Bauby e mãe de seus três filhos. Ela está estupenda em seu papel, como uma mulher devotada ao homem que amou (e continua amando, ainda que de maneira distinta), que tenta controlar seus sentimentos mas que, ainda assim, demonstra os ciúmes que tem de Inès (Agathe de la Fontaine), a mulher que se tornou a paixão na vida de Bauby. Muito interessante a complexidade de Céline e, ao mesmo tempo, sua simplicidade. Merece uma menção especial também a comovente interpretação de Max von Sydow como Papinou, o pai um tanto “esclerosado” de Bauby.

Além de contar uma nova maneira de encarar a vida e, ainda assim, de sentí-la plenamente, Le Scaphandre et le Papillon é como uma minibiografia de Bauby, que conta seus amores – além de Céline e Inès, também o de Joséphine (Marina Hands) -, sua relação com a família – incluindo seus três filhos, Théophile (Théo Sampaio), Céleste (Fiorella Campanella) e Hortense (Talina Boyaci) – e com amigos, como Laurent (Isaach De Bankolé). A interpretação de Anne Consigny como Claude Mendibil, a mulher que possibilita que o livro de Bauby seja publicado, interpretando o que ele diz através de suas piscadas, também merece destaque. Ela consegue equilibrar no tom exato dedicação e apaixonamento pelo que ele consegue fazer, por seu testemunho de vida e coragem de enfrentar as limitações do que lhe aconteceu.

O interessante da história é que o que acontece com Bauby é a privação extrema da liberdade. Afinal, ele não pode se mexer e nem falar, não pode ir para onde tem vontade, nem tocar as pessoas que ama, nem sentir nada com os dedos ou a ponta dos pés. Consegue apenas raciocinar e, mais tarde, expressar o que sente e pensa através dos olhos. Apaixonado pela vida, ele prefere continuar respirando e existindo desta maneira, fazendo uso principalmente da sua imaginação e da sua memória, para continuar curtindo cada minuto que tem a seu dispor. É um exemplo maravilhoso. A memória e a imaginação, que instrumentos incríveis. Além deles, eu adicionaria ao exemplo de Bauby algumas doses de sarcasmo e de senso de humor. Acho que só através desta última ferramenta ele consegue suportar a sua condição após o derrame.

Como disse antes, Le Scaphandre et le Papillon é o contrário de Mar Adentro. Lembro que quando vi o filme de Amenábar, adorei a história. Especialmente porque ela tratou com “distanciamento” e, ao mesmo tempo, uma aproximação inevitável o drama de Sampedro que, diferente de Bauby, podia falar. Ele decidiu que preferia morrer a continuar vivendo em sua condição de paralisia. Gostei do filme porque ele trata com respeito a decisão de uma pessoa em querer morrer – afinal, se alguém não suporta a vida como está tendo, por que não pode decidir terminar com ela? Sei que sempre se deve ter esperança e que a vida está cheia de boas surpresas, mas quem pode condenar alguém que decidiu que prefere que tudo termine? Eu não posso julgar uma pessoa como Sampedro. Ainda assim, devo admitir, que gostei muito mais do exemplo de Bauby, até porque ele mostra que até na pior condição humana imaginável é possível sacar proveito, aprendizado.

Sobre a memória e a imaginação… realmente, acho que por pior que esteja a vida de alguém ou por maior que seja a sua privação de liberdade – de escolha, por exemplo -, sempre lhe resta a capacidade de lembrar do passado com orgulho, com fantasia. Sempre é bom olhar pra trás e ver tudo que uma pessoa já caminhou para chegar até determinado lugar. Recordar todas as dificuldades que passou e as quais conseguiu superar, lembrar de todos os amores e pessoas especiais que fizeram a sua vida até ali… lembrar é importante para se saber a pessoa que somos e o porquê de sermos desta maneira. E a imaginação… até a memória fica interessante com um pouco de imaginação, de cores absurdas. E a vida atual também. Fantasiar faz bem, imaginar uma realidade distinta abre horizontes. Memória e imaginação podem nos libertar, nos prender, nos firmar no chão ou nos dar asas. Tudo depende do uso que se faz das duas.

NOTA: 9,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Devo comentar que o filme talvez não caia no gosto popular e nem se mostre interessante para todos. Digo isso porque ele é, até uma grande parte e em um certo sentido, bem experimental. Especialmente pela narrativa em primeira pessoa que está em grande parte da produção. Sendo assim, são frequentes as imagens sem foco, os ângulos de câmera que mudam conforme o “humor” do protagonista, dentre outros jogos de imagem que não obedece ao padrão de Hollywood. O que, para mim, é uma qualidade – claro! Quem não sofrer de vertigens e nem passar “mal” com algumas cenas – como a do olho sendo costurado – pode gostar do filme.

Algo de bom aconteceu no lançamento desta produção francesa mundo afora: o título original foi preservado. Sendo assim, nos Estados Unidos e nos demais países de língua inglesa, o filme recebeu o nome de The Diving Bell and the Butterfly, enquanto no Brasil ele recebeu o nome de O Escafandro e a Borboleta.

O filme ganhou, até agora, 26 prêmios, com destaque para o de melhor roteiro no BAFTA (versão inglesa do Oscar); melhor diretor no Festival de Cannes (onde o diretor de fotografia Janusz Kaminski recebeu também, de forma muito merecida, um importante prêmio técnico); melhor diretor e melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro; entre outros. Além destes prêmios, Le Scaphandre et le Papillon foi indicado a outros 30.

Sei que os filmes são muito diferentes – em temática e estilo -, mas comparado com 4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, Le Scaphandre et le Papillon me parece um filme muito mais “inovador”, ousado e interessante. O mesmo digo de Persepolis – que me pareceu mais interessante que a obra de Cristian Mungiu -, ainda que o filme ganhador da Palma de Ouro seja muito bom, é claro. Mas gostos são gostos…

Voltando a Le Scaphandre et le Papillon… o filme de Schnabel registra a nota 8,3 no site IMDb, assim como acumula 129 críticas positivas e apenas 9 negativas no site Rotten Tomatoes – agradou mais aos críticos que ao público.

E por falar em público, o filme arrecadou, até 10 de fevereiro, pouco mais de US$ 4,3 milhões nos Estados Unidos. Pouco, levando em conta que ele estava presente em 213 salas de cinema – pelo menos nesta última semana, quando conseguiu pouco mais de US$ 433 mil em todas estas salas.

Julian Schnabel não é um diretor muito prolífero. Tanto que desde a sua estréia na direção em 1996 com Basquiat – um filme delicioso! -, ele só havia dirigido um filme antes deste Le Scaphandre et le Papillon: Before Night Falls, outro filme interesantíssimo com Javier Bardem e datado do ano 2000. Ou seja: em 11 anos ele só fez dois filmes. Mas os dois de qualidade, diga-se.

Este filme é uma co-produção da França e dos Estados Unidos.

PALPITE PARA O OSCAR: Le Scaphandre et le Papillon foi indicado aos prêmios de Melhor Diretor, Melhor Fotografia, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Edição. Sinceramente? Ainda que ele mereça ganhar prêmios nestas três categorias, acho que na verdade ele sairá de “mãos abanando” deste Oscar 2008. Digo isso porque acho que apenas as indicações do filme francês já serão consideradas “uma vitória” pelos membros da Academia. Duvido muito que eles deixem de dar o Oscar de direção para os irmãos Coen ou para Paul Thomas Anderson, todos “na crista da onda”, para premiar o menos conhecido e menos “produtivo” nova-iorquino Julian Schnabel. Também duvido muito que vão premiar o roteiro deste filme em lugar de No Country for Old Men, Atonement ou There Will Be Blood. A verdade é que em cada categoria em que Le Scaphandre et le Papillon concorre este ano existe um outro “medalhão” interessante para a indústria que está correndo na frente.

CONCLUSÃO: Autobiografia do editor de moda Jean-Dominique Bauby a partir do momento em que ele fica totalmente paralisado após um derrame. Interessante narrativa de um homem “sem comunicação” tradicional com o meio exterior em primeira pessoa – ainda que as “inovações” de câmera podem deixar alguns com vertigem. Uma antítese de Mar Adentro, um belo retrato da possibilidade humana de superação mesmo com a maior das adversidades.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

7 respostas em “Le Scaphandre et le Papillon – O Escafandro e a Borboleta”

É querida….a imaginaçâo e a memória. E é irônico que o pai dele perdeu a memória, né?
Eu completo seu bonito texto com um comentário sobre a música do filme. É essencial, delicada e emocionante sem ser invasiva. Ajuda a colocar a gente em um profundo clima de comoçâo.
Boa recomendaçâo, Ale. Lindo mesmo.
Chorei litros.
Beijo.

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Oi querida Vane!

Sempre muito bom receber uma visita sua por aqui…

Realmente, tens toda a razão de que a música ajuda muitíssimo a reafirmar a sensibilidade das cenas que são mostradas, assim como reforça a emoção que o roteiro quer revelar. Cometi a falha de não citar o trabalho de Paul Cantelon na trilha sonora. Obrigada por em corrigir. 😉

E sim, é irônico o pai dele justamente sofrer com uma enfermidade que lhe limita a memória e, até um certo ponto, a sanidade. Achei isso uma grande lição, afinal, ainda vivemos em uma sociedade que acredita que o quanto mais uma pessoa viver, melhor. Mas do que adianta viver 100 anos sem qualidade de vida, sem a capacidade de ter memória e imaginação? Viver muito não é, necessariamente, o mesmo que viver bem. E os velhinhos que sofrem mundo afora que o digam. Por isso que eu acho que Le Scaphandre et le Papillon nos mostra como, por exemplo, uma pessoa como Bauby pode estar vivendo a vida mais intensamente e aprendendo muito mais com ela do que pessoas muito “saudáveis” ou com todas as suas capacidades motoras em ordem… ou até consiga viver mais, no tempo que ele tem de vida, do que o pai que morreu velhinho.

Enfim, é um filme com muitos temas e muitas formas de análise. Belíssimo e digno de recomendação. Que bom que você gostou…

Beijosssssssssssssssss grandes, queridíssima, e volte aqui sempre!

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