A beleza dos pequenos detalhes e as histórias curiosas que ouvimos apenas pela metade quando encontramos com pessoas que não conhecemos são pura poesia. Para quem está atento aos detalhes do dia a dia, há muita beleza no cotidiano. É sobre isso e sobre a poesia da vida “ordinária” que trata Paterson, um filme que é bastante lento e que pode dar sono para muita gente, mas que vale ser visto e conhecido por quem gosta de um tipo de cinema diferente. Não há efeitos especiais por aqui, apenas uma reflexão curiosa sobre vidas simples e os efeitos da arte no nosso cotidiano.
A HISTÓRIA: É segunda-feira e Paterson (Adam Driver) e Laura (Golshifteh Farahani) estão deitados na cama frente a frente. Ele acorda pouco depois das 6h10 e confere o horário no velho relógio de pulso. Beija a mulher, que fala sobre o sonho que ela teve de que os dois tinham tido dois filhos velhos e gêmeos. Eles conversam um pouco antes de Paterson levantar da cama e ir tomar café da manhã sozinho. Ele observa a caixa de fósforos na cozinha e desta observação surge um novo poema. Paterson sai de casa e vai para o trabalho, onde atua como motorista de ônibus. Esta é a história dele.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Paterson): A vida “ordinária” é a matéria prima para a poesia e para outras variações da arte que vive da observação do cotidiano. A poesia também fala do que sentimos e percebemos de forma diferenciada, assim como vários filmes e séries de TV. Paterson segue esta linha e trata sobre o relacionamento estreito entre a vida comum e o olhar cuidadoso sobre ela.
Esta leitura da produção nós temos conforme o filme avança. A produção tem uma narrativa linear e que acompanha uma semana na vida do protagonista, Paterson, que tem o mesmo nome da cidade americana em que ele nasceu e onde sempre viveu. Como a história começa na segunda-feira e mostra a rotina de Paterson desde que ele acorda e até o final do dia, o roteiro do diretor Jim Jarmusch acaba sendo bastante repetitivo.
Francamente, me deu um pouco de sono. Mas se você vence esta barreira, consegue acompanhar com o mesmo cuidado e generosidade do olhar do protagonista o cotidiano simples que lhe cerca. Há muita beleza e detalhes interessantes na cidade de Paterson, assim como em todos os lugares do mundo. Basta ter tempo e cuidado para observar. Ajuda também no processo soltar a imaginação e ver a vida com mais curiosidade e generosidade.
Por tudo isso, Paterson é um filme interessante e sensível. Vencido o sono que cotidiano sem grandes “aventuras” do protagonista desta produção nos provoca, conseguimos refletir sobre o que Jarmusch nos apresenta. A vida da maioria das pessoas no mundo é como a de Paterson, bastante comum. Mas há muita beleza e poesia em vidas como a dele. Este é, possivelmente, o grande insight desta produção.
Na reta final da produção, também somos lançados a outras duas reflexões. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Tudo parece estar bem, até que o cão do casal de protagonistas destroça o caderno com poesias de Paterson. Isso acontece na nossa vida também. Sem menos esperar, alguma “tragédia” pode acontecer e mudar definitivamente alguns planos que tínhamos – no caso de Paterson, Laura insistia há bastante tempo para ele fazer uma cópia das poesias e ele tinha prometido que faria isso. Mas não houve tempo hábil das cópias serem feitas.
Jarmusch nos mostra como a tristeza após uma adversidade é bem-vinda e faz parte do processo, mas que nunca devemos desistir. Paterson mostra resiliência, especialmente após uma conversa transformadora com um poeta japonês que está visitando a cidade (interpretado por Masatoshi Nagase). E, como tantas pessoas comuns mundo afora, Paterson também recomeça. Mais uma semana e mais um caderno de poesias.
A segunda reflexão daquele final do filme é que a arte é sempre inspiradora e vence a passagem do tempo e das vidas comuns. A pequena cidade de Paterson ficou mundialmente conhecida pelos seus artistas, assim como tantas outras cidades. O protagonista do filme é fascinado por William Carlos Williams, poeta que fez boa parte de sua obra na cidade de Paterson. O turista japonês também é levado para Paterson por causa de Williams e de outros nomes, o que nos mostra a força da poesia e da arte.
Desta forma, de forma bastante cuidadosa e interessante, Jarmusch faz o seu libelo em favor da arte e da vida comum. Ele mostra como o cotidiano de qualquer pessoa simples é cheio de riqueza e de beleza, e que praticamente qualquer pessoa pode ser um poeta e muito mais do que a sua profissão regular define. Para isso, basta estar disposto a dar vasão para as suas habilidades e investir nelas.
Um belo filme, ainda que um tanto cansativo. Mas ele é cheio de boas intenções e isso é o que vale. Paterson está mais para a arte do que para uma bela obra de cinema. Mas ele também mostra como a vida é bela em sua simplicidade e quando aceitamos quem a gente ama exatamente como a pessoa é. Por esta mensagem, ele merece a nota abaixo. Ou seja, mais pelo sentido do que pela execução ou por algo novo que o filme apresente.
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: O diretor Jim Jarmusch faz um belo trabalho ao acompanhar vários detalhes do cotidiano de Paterson. Acompanhamos de perto o protagonista ao mesmo tempo que mergulhamos nas belezas da cidade em que ele vive e no cotidiano das pessoas comuns que cruzam o caminho dele. Jarmusch acerta na direção detalhista e cuidadosa. O roteiro também é cuidadosamente construído para defender a proposta do diretor. Ele quer valorizar a vida comum e consegue fazer isso sem nunca abrir mão da simplicidade – francamente senti falta de um pouco mais de ousadia por parte dele, mas entendo as escolhas do realizador.
O grande nome desta produção é de Adam Driver. Ele traz muita legitimidade e coerência para o personagem que dá nome para a produção. A iraniana Golshifteh Farahani também está muito bem. Ela é a parte encantadora da produção, o estímulo que Paterson tem em enfrentar a rotina do dia a dia. Também estão bem outros atores secundários, com destaque para o veterano Barry Shabaka Henley como Doc, o dono do bar onde Paterson termina todas as noites da semana; Rizwan Manji como Donny, supervisor da empresa de ônibus onde Paterson trabalha; Chasten Harmon como Marie, amiga de Paterson e que vive dando o fora no ex-namorado Everett; e William Jackson Harper como Everett, um ator um tanto “charlatão” que não aceita a separação. Masatoshi Nagase também merece uma menção especial porque tem um papel importante no momento derradeiro da produção. Todos estão bem.
Por falar na história desta produção, ela tem outro aspecto interessante: fala sobre o cotidiano de milhões e milhões de americanos. Pessoas que tem rotinas simples, vivem de trabalhos com uma remuneração relativamente baixa, em cidades de pequeno ou médio porte, tem cotidianos bem repetitivos e terminam a maior parte do dia sendo “presenteados” com uma cerveja no bar.
Da parte técnica do filme, vale destacar a direção de fotografia de Frederick Elmes, a ótima e cuidadosa edição de Affonso Gonçalves, a trilha sonora bastante pontual e lírica de Jim Jarmusch e de Carter Logan Sqürl, os figurinos de Catherine George, o design de produção de Mark Friedberg, a direção de arte de Kim Jennings e a decoração de set de Lydia Marks.
Jarmusch dá um certo destaque para o cão Nellie que, além de aparecer como parte do elenco, ainda recebeu um agradecimento especial do diretor. De fato, o cão de estimação de Paterson acaba atuando como um “coadjuvante” de luxo da produção.
Não encontrei informações sobre os custos de Paterson, mas vi que a produção fez pouco mais de US$ 2,15 milhões nos Estados Unidos. Filme independente e com uma bilheteria bastante baixa. Realmente ele se deu melhor com a crítica do que com o público.
Esta produção foi rodada em Paterson, cidade do Estado americano de Nova Jersey, assim como nos bairros nova-iorquinos de Yonkers e do Queens.
O filme dá a entender que o poeta William Carlos Williams nasceu em Paterson. Na verdade, segundo pesquisei, ele nasceu na cidade vizinha de Paterson, Rutherford, mas escreveu parte importante de sua obra em Paterson – inclusive ele tem um poema com o nome da cidade.
De acordo com as notas de produção de Paterson, os poemas que vemos no filme são de Ron Padgett, um dos poetas contemporâneos favoritos de Jim Jarmusch. Padgett aceitou escrever poemas específicos para a produção e deu autorização para Jarmusch usar alguns de seus poemas anteriores à produção.
Uma exceção é o poema lido por uma jovem estudante para Paterson durante a produção. Este poema foi escrito pelo próprio Jarmusch.
O ator Adam Driver foi para a autoescola e tirou permissão para dirigir ônibus. Ele queria conhecer sobre o ofício o suficiente para entrar no “piloto automático” como motorista de ônibus no filme. Drive aprendeu o ofício durante três meses no Queens, em Nova York.
Paterson recebeu sete prêmios e foi indicado a outros 27. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Filme segundo a escolha do público do Festival Internacional de Cinema FEST; para o de Melhor Ator em Filme Estrangeiro no Prêmio Sant Jordi; e para os de Melhor Ator para Adam Driver dados pela Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles e pela Associação de Críticos de Cinema de Toronto. Um prêmio curioso foi o Palm Dog para Nellie no Festival de Cinema de Cannes.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para Paterson. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram ainda mais generosos, dedicando 185 críticas positivas e nove negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 95% e uma nota média de 8,6. Especialmente a nota dada pelos críticos é ótima e bem acima do padrão do site. Interessante.
Esta é uma coprodução dos Estados Unidos, da França e da Alemanha. Por causa desta origem a produção entra para a lista de filmes que atendem a uma votação feita aqui no blog há algum tempo.
CONCLUSÃO: Este é mais um daqueles filmes que tem grande potencial de desagradar à maioria e de cair no gosto de um público bastante específico. Paterson é um filme lento e bastante repetitivo, mas estas escolhas são propositais. O filme trata sobre poesia e sobre a observação do cotidiano e demonstra como qualquer pessoa pode desenvolver a capacidade de ver a vida com poesia. Todos temos grande potencial, e por mais que a nossa vida pareça “ordinária”, ela pode ser cheia de significado. Um filme singelo, com um propósito bastante franco e que dá um pouco de sono, mas que merece ser admirado.
3 respostas em “Paterson”
[…] LIBELO A FAVOR DA ARTE E DA VIDA COMUM… por Alessandra Ogeda […]
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[…] mesmo quando não nos damos conta dela. El Ciudadano Ilustre, a exemplo do recentemente comentado por aqui Paterson, trata de literatura e da vivência do artista. Mas diferente do filme de Jim Jarmusch, El […]
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Eu ainda não entendi o que o poeta japonês diz . Alguém pode me ajudar??? Kkkkk obrigado
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