Ser mãe é uma tarefa complicada. Claro que todas as noites insones, as mudanças no corpo, as preocupações e a correria maior do dia a dia são compensadas pelo amor recebido pelos filhos. Mas nada disso apaga a dureza e o desafio da jornada. Acredito que Tully seja um dos melhores – senão o melhor – filme que eu já assisti sobre a maternidade. Uma história interessante e que faz pensar sobre como as mães são cobradas atualmente. Mais um belo trabalho da roteirista Diablo Cody – e do restante da equipe que faz parte desta produção.
A HISTÓRIA: Pela escada que dá acesso a um quarto, Marlo (Charlize Theron) desce com cuidado. Ela está grávida, e caminha com cuidado para o quarto do filho, Jonah (Asher Miles Fallica), um garoto que exige cuidados especiais. Marlo coloca uma música, pega uma escova e começa a escovar os braços e as costas do menino. Quando chega a hora das crianças irem para a escola, a mãe lembra Sarah (Lia Frankland) que ela não deve esquecer a sua bombinha. Na escola, Marlo fica sabendo que provavelmente terá que escolher outro local para o filho estudar. Os desafios dessa mãe estão apenas começando.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Tully): Eita que o tempo está passando muito rápido! Assisti esse filme há algumas semanas, então peço perdão pelo atraso nessa publicação. Mas é que logo depois saí de férias por 15 dias – folga esta que está terminando, que pena! -, e aí me dediquei a outros afazeres. Desculpem a demora.
Apesar do tempo transcorrido desde que eu vi esse filme e de ter assistido a duas produções depois – já comecei a escrever sobre elas também, logo vocês verão as críticas por aqui -, me lembro bem da produção dirigida por Jason Reitman e com roteiro da sempre interessante Diablo Cody.
A roteirista natural de Chicago e com 40 anos recém completados – ela faz aniversário no dia 14 de junho – tem 14 trabalhos no currículo e um Oscar. Ela ganhou o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood por Juno (filme comentado por aqui) e que é uma das produções mais interessantes sobre a adolescência “atual” (e sobre maternidade também).
Então Tully já começa com a ótima qualidade de ter o roteiro escrito por Diablo Cody. Como é típico de seu trabalho, encontramos nesse filme diálogos interessantes e ágeis e uma preocupação em manter o foco da história nas pessoas e nas suas relações. Cody não tem papas na língua e procura mostrar uma história que reflita os tempos atuais – sem muito lirismo e com muita franqueza.
E é exatamente isso que vemos em cena. Esqueça a maternidade vista de maneira idealizada ou “pueril”. Cody coloca o dedo na ferida na parte “hardcore” da maternidade – especialmente no caso de mulheres que tem mais de um filho. A protagonista deste filme, muito bem interpretada por Charlize Theron, está justamente na fase da terceira gravidez. Ela está com um barrigão enorme, muito trabalho dentro de casa e ainda a responsabilidade de dar conta de dois filhos – sendo um deles um bocado “problemático” e/ou com necessidades especiais.
A rapadura é doce, mas não é mole não. E é sobre isso Tully. Sobre como uma mulher, linda e que já está deixando a beleza da juventude para trás, deve se desdobrar e se reinventar para conseguir dar conta de um casamento e de três filhos. Nesse contexto, surge a ideia de Craig (Mark Duplass), irmão descolado – e não muito “querido” – de Marlo. Ele é pai de duas crianças mas parece muito tranquilo sobre isso – assim como a esposa dele, Elyse (Elaine Tan).
Toda essa “tranquilidade” de Craig e de Elyse parecem irritar um pouco Marlo e Drew (Ron Livingston), que parece terem que ralar muito mais do que o irmão “endinheirado” dela. Mas é Craig quem acaba oferecendo um presente interessante – e um pouco inusitado – para a irmã: um tipo de babá noturna que pode ajudá-la a dormir e a relaxar. E ela está precisando muito, muito relaxar – como ninguém poderia sequer imaginar.
Inicialmente, como tantas mães que vestem a roupa de “super mãe” (aquela ideia antiga de que as “mães de verdade” devem sofrer e dar conta de tudo sozinhas), Marlo resiste à essa ideia. Afinal, onde já se viu entregar a filha recém nascida para os cuidados de uma “desconhecida”? Mas depois de algum tempo ela cede à tentação e acaba topando. E aí que ela conhece a Tully (Mackenzie Davis).
A partir daí, o filme se desenrola em uma relação interessante, provocante e um tanto “apimentada” – cheia de entrelinhas – entre Marlo, Tully e até o marido da protagonista, Drew. Tudo flui de maneira interessante e sugestiva, envolvendo o espectador em relações que algumas vezes parecem um tanto estranhas, mas que não vemos a hora do novelo se desenrolar. E ele se desenrola com uma certa “surpresa”.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Dificilmente Diablo Cody escreve um roteiro sem alguma surpresa aqui e ali. E, novamente, ela nos apresenta isso em Tully. No fim das contas, esse filme se revela uma bela reflexão sobre o amadurecimento de uma mãe e sobre como uma mulher pode se dar conta de que viveu várias vidas dentro de uma mesma vida. Sim, é maravilhoso ter um marido e filhos, mas também é inevitável, algumas vezes, olhar para trás e não ter saudade sobre um tempo em que tudo era mais “fácil” e mais libertário.
A vida tem diversas fases e etapas. Cada uma delas com as suas dificuldades, riquezas, alegrias e aprendizados. Para viver bem e não “enlouquecer” é preciso ver a beleza de cada fase e não querer voltar ou avançar demais no tempo. O único tempo que existe, de fato, é o presente, já disseram. E isso é bem verdade. No mais, passado e futuro valem para reminiscências, para um e outro soluço e para sonhar. Mas nunca para viver.
Tully nos fala um pouco sobre isso. Sobre as dificuldades da amizade e sobre as diversas vidas de uma mulher. Ter filhos é maravilhoso, mas também exige muito de uma mulher – mais do que do homem que vira pai. Por isso mesmo, é preciso ter mais compaixão e paciência com as mães, especialmente com as que tem vários filhos “pequenos”. A vida é dura para elas, e não é difícil de imaginar como elas gostariam de sair correndo ou de fugir às vezes.
Claro que, como todo dia ruim na vida de qualquer pessoa, esses dias de “desespero” ou de vontade intensa de fugir passam. Mais cedo ou mais tarde, as pessoas próximas podem se dar conta dessa aflição e ajudar – mesmo que demorem um pouco, como é o caso do marido de Marlo. O importante é saber que tudo passa – o que é bom e o que é ruim – e que cada fase da vida deve ser aproveitada ao máximo. De tudo podemos tirar aprendizado, se assim desejarmos.
Assim, Tully nos fala sobre a vida mesma. Sobre as nossas escolhas, sobre os prazeres e dores colhidos a partir dos caminhos trilhados. A vida é bela, é nosso maior presente, mas também é dura em diversos momentos. Tully nos ensina que é possível vencer a tudo isso, seja com amor, seja com alguma dose de loucura. O importante mesmo é buscarmos fazer sempre o melhor e, dentro do possível, olhar com atenção para quem está do lado. Isso e um pouco de sorte pode fazer toda a diferença.
Além de apresentar uma pegada bastante “humana”, o que eu gostei nesse filme foi da “surpresa” envolvendo a relação entre Marlo e Tully. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Perto da “revelação”, eu achava que podia estar rolando um interesse de Tully por Marlo, por isso o desejo dela de não “cuidar” mais de Marlo e de sua família. Mas quando sabemos que Tully era Marlo jovem, tudo faz sentido. No fim das contas, Marlo estava se desdobrando em duas – algo muito real para mães naquela situação – e acaba meio que “pirando” por causa disso.
Bela sacada de Cody para demonstrar não apenas como uma mãe de três filhos realmente pode perder os sentidos se não tiver o apoio mais adequado como também foi um recurso interessante para mostrar como a “mãezona Marlo” poderia, finalmente, com um bocado de boa vontade, fazer as pazes com a sua versão mais jovem. Bastante cobrada – inclusive pela vaidade -, a mãe que deixa a leveza da juventude para trás não precisa fazer isso com amargura. Basta saber que cada fase tem a sua graça e que ser mãe de três filhos também é algo incrível. Belo filme.
NOTA: 9,2.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: A grande qualidade desse filme, para mim, é o roteiro de Diablo Cody. Por todas as razões que eu comentei antes. Mas vale resumir por aqui também: o texto humano, cheio de diálogos interessantes – e uma “pimenta” aqui e ali – e que equilibra bem humor e drama, o foco na história dos personagens e em suas relações. Esse é o ponto forte de Tully. Mas é preciso dizer também que outro destaque da produção é o trabalho de Charlize Theron. Mais uma vez a atriz procura um papel de “gente como a gente” e faz uma entrega impecável.
Ainda que Charlize Theron seja o grande destaque desta produção, existe uma turma de “coadjuvantes” que fazem uma entrega condizente com os seus personagens – o que ajuda o filme a manter o alto nível. Nesse sentido, vale destacar, em especial, o trabalho interessante e o carisma de Mackenzie Davis como Tully. Além dela, vale citar o bom trabalho – mas nada acima da média – de Mark Duplass como o irmão de Marlo, Craig; Ron Livingston como o marido da protagonista, Drew; Elaine Tan como Elyse, mulher de Craig; Lia Frankland muito bem como Sarah, filha mais velha do casal Marlo e Drew; e Asher Miles Fallica como o “desafiador” Jonah, segundo filho do casal.
Entre os aspectos técnicos do filme, uma salva de palmas especial para a trilha sonora interessantíssima – e escolhida a dedo – de Rob Simonsen. O diretor Jason Reitman faz um bom trabalho, acompanhando sempre de perto os atores e valorizando também os seus “habitats”, mas não achei a sua direção realmente impactante – ou inovadora. Mas ele está bem. Também vale destacar o bom trabalho do diretor de fotografia Eric Steelberg; a ótima edição de Stefan Grube; o design de produção de Anastasia Masaro; a direção de arte de Craig Humphries e de Maki Takenouchi; a decoração de set de Louise Roper e de Karin Wiesel; e os figurinos de Aieisha Li.
Tully estreou em janeiro de 2018 no Festival de Cinema de Sundance. Depois, o filme participou, ainda, de outros cinco festivais de cinema, todos nos Estados Unidos. Nessa trajetória, o filme foi indicado a apenas um prêmio, mas não saiu vencedor.
Agora, algumas curiosidades sobre Tully. A atriz Charlize Theron ganhou 22,7 quilos – ou 50 libras – para fazer o papel principal desta produção. Para engordar dessa maneira, ela fez uma dieta de “junk food”, o que incluiu muitos “burger’s” com tudo dentro, milkshakes e alimentos processados. Para “manter o peso” conquistado, a atriz também se habituou a comer macarrão com queijo na madrugada. A atriz disse que o filho mais novo dela achou que ela estava grávida por causa da mudança no seu corpo. Após fazer Tully, a atriz demorou um ano e meio para voltar para a forma antiga. Isso que é vontade de “entrar” no papel, hein?
O sacrifício de Charlize Theron acabou cobrando um preço alto da atriz. Segundo as notas da produção, pela primeira vez Charlize Theron sofreu depressão enquanto participava dessa produção – um pouco por causa do ganho de peso e da pressão para perder ele depois que o filme fosse rodado.
O filme rendeu uma certa discussão – e polêmica – por tratar do tema da depressão pós-parto. Alguns acham que isso não ficou tão claro, assim como os tratamentos disponíveis para o problema, enquanto outros consideraram que o filme acerta ao não deixar o tema claro – já que a depressão pós-parto muitas vezes não é diagnosticada. Da minha parte, acho que o filme vai além desse tema. Não vejo que o foco seja só a depressão pós-parto, mas outras questões envolvendo a maternidade e que vão além desta “condição” momentânea.
Tully faturou, segundo o site Box Office Mojo, pouco mais de US$ 9,2 milhões nos Estados Unidos. Um resultado bom para um filme alternativo, mas não muito expressiva para uma produção com os nomes envolvidos.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,4 para Tully, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no site Rotten Tomatoes dedicaram 189 críticas positivas e 29 negativas para esta produção – o que lhe garante uma aprovação de 87% e uma nota média de 7,7. No site Metacritic o filme ostenta um metascore de 75, fruto de 46 críticas positivas e seis medianas. Ou seja, o filme se saiu muito bem segundo a crítica do público e da crítica.
Tully é uma produção 100% dos Estados Unidos, por isso esse filme atende a uma votação feita por aqui há tempos.
CONCLUSÃO: Um roteiro envolvente, bem ao estilo “A Vida Como Ela É”, que nos faz pensar e que nos presenteia com ótimos diálogos e atuações coerentes. Tudo parece funcionar em um compasso quase perfeito neste Tully. Uma produção bastante honesta sobre a maternidade, todos os seus desafios e aprendizados. O ideal é assistir a esse filme se deliciando com ele mas também refletindo sobre o que estamos vendo.
Quantas mães, muito cobradas por si mesmas e pelos outros, vivem por aí “à beira de um ataque de nervos”? Vale pensarmos sobre isso e sermos mais solidários. Mesmo que for apenas para deixá-las desabafar ou ajudar aqui e ali com pequenos gestos. Belo filme, com uma mensagem bem bacana e um bocado de reflexões deixadas no ar. Acima da média.