Você está preparado(a) para se apaixonar por um gato? Porque é isso que vai acontecer com você quando você assistir a Straume. Que filme maravilhoso! Lindo, tanto na parte visual quanto na história que ele nos apresenta. Uma produção relativamente “simples”, que pode ser entendida por públicos de todas as idades, mas que provoca algumas reflexões nas pessoas que sempre gostam de ponderar um pouco mais sobre alguns aspectos das histórias e do cinema. Um dos grandes filmes da última temporada do Oscar.
A HISTÓRIA
Um gato olha seu próprio reflexo na água. Ele está sozinho, dando pequenos miados enquanto a água se agita um pouco. Em seguida, ele ouve um barulho na mata. O gato olha atento ao redor, e logo vê um coelho passando por ele de forma veloz. O gato fica um pouco assustado, e alerta, e logo ouve latidos. Ele se esconde pouco antes de uma matilha de cães passar correndo pelo local em que ele estava. Depois vemos esse gato caminhando por seu paraíso particular, seu refúgio, onde borboletas brancas preenchem o ar e estátuas de gatos ajudam a povoar a paisagem. Mas toda essa calma em breve vai terminar.
VOLTANDO À CRÍTICA
(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Straume): Pois bem, minha gente, zerei a minha lista de filmes que foram indicados ao último Oscar! Agora sim, posso começar a olhar para outras direções. E foi bom eu ter deixado Straume para o final. Para que eu ficasse com um “gosto bom na boca”.
Porque sim, Straume é um grande filme. Quem me acompanha aqui no blog há mais tempo, sabe que eu gosto de filmes de animação, mas que eles nunca são a minha prioridade. Nos anos em que eu consigo mais tempo livre para assistir a filmes que concorrem ao Oscar ou em outras premiações importantes de cinema no mundo, costumo ver outros tipos de produção antes de me debruçar sobre as animações.
Nos últimos anos, como tenho conseguido ver a menos filmes do que eu gostaria – ou necessitaria -, os filmes de animação que concorreram ao Oscar ficaram de fora aqui do blog. Quem me acompanha com certa fidelidade – e vocês são guerreiros(as), já que eu andei meio ausente – já percebeu isso. Mas o bom é que Straume concorreu, neste ano, não apenas na categoria de Melhor Animação no Oscar 2025 mas, também, na minha preferida categoria Melhor Filme Internacional.
Como vocês devem saber, Straume perdeu nessa categoria para o brasileiro Ainda Estou Aqui (com crítica neste link). Devo dizer que, de fato, o nosso filme era a obra-prima do ano e que merecia ganhar entre os outros quatro concorrentes que chegaram até a lista final da disputa. Mas Straume ficaria em segundo lugar entre os melhores filmes e, mesmo eu não assistindo aos outros concorrentes na categoria Melhor Animação, devo dizer que ele mereceu levar o Oscar para casa nessa disputa.
Acho difícil alguém não se apaixonar por Straume logo nos primeiros minutos da produção. O diretor e roteirista Gints Zilbalodis apresenta um talento ímpar tanto em sua arte visual quanto na narrativa que ele conduz com esmero e atenção a cada mínimo detalhe. O visual de Straume pode não ser o mais elaborado de todos, o desenho, especialmente dos personagens, chega a ser “simples” sob uma análise mais criteriosa, mas Zilbalodis nos demonstra por A+B que isso é o que menos importa.
O que interessa em Straume é como não apenas o visual, mas a condução da história, com a atenção em cada mínimo detalhe dos personagens que o diretor e roteirista vai nos apresentando pela frente, torna essa aventura diferente e especial. Nos colocamos literalmente ao lado do protagonista do filme, submergindo em suas emoções, em sua vontade de viver apesar de todas as chances jogando contra, ficando tão fascinados quanto ele a cada nova paisagem e lugar diferente que se apresenta pela frente.
Sentimos medo, encantamento, espanto, adrenalina, admiração. Lá pelas tantas, a história até parece nos assustar ou nos surpreender menos, porque já estamos um pouco acostumados com o “desastre” – e o quanto isso pode ser ruim, nos acostumarmos com o desastre? -, e até pode parecer que o roteiro está um pouco repetitivo no quesito “aventuras”, mas então Zibalodis abre mão de mais tempo de filme na tela e nos encaminha para o final da produção.
Straume demonstra como um filme não precisa ser super longo ou demorar mais de três horas para contar uma boa história. Como podemos viver intensamente uma produção e pensarmos em diversos aspectos do filme tendo uma produção relativamente curta pela frente. Sim, Zibalodis poderia ter nos levado para mais cenários e locais inusitados, mas para que? O diretor nos apresentou o que ele precisava e desejava e nos surpreendeu com um final que parecia demorar um pouco mais para acontecer.
(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). No fim, o dilúvio que inundou toda a Terra e acabou com boa parte das espécies do planeta – ao menos é o que Straume nos sugere, e é impossível não fazer um paralelo com o dilúvio bíblico – terminou de forma tão repentina e imprevisível como tinha começado. Claro, isso porque estávamos sob a perspectiva de um gato e de seus amigos. Será que a espécie humana, que não aparece em cena nesse filme, teria percebido o risco antes dele se consolidar? Ou será que não vemos nenhum humano em cena porque já fomos exterminados do planeta antes da história começar a se desenvolver? Ou esse dilúvio que vemos em Straume foi aquele bíblico, em uma época em que os humanos não se espalhavam pelo planeta tanto quanto agora, e quando realmente outros animais poderiam ter sobrevivido para além da Arca de Noé?
Enfim, esse filme nos faz pensar um bocado sobre vários aspectos. Mas vamos pensar em tudo isso que eu perguntei no parágrafo anterior muito depois de Straume terminar. Porque enquanto a produção está se desenvolvendo, estamos tão mergulhados na narrativa que Zilbalodis nos apresenta que sobra pouco tempo para refletir sobre o que não está jogado na nossa cara. E isso é ótimo. Vivenciamos, assim, um bocado da pele do protagonista e de seus amigos. Existe algum espaço para contemplação, é verdade, de belas paisagens e imagens, mas na maior parte do tempo estamos vivenciando as emoções que os personagens experimentam.
E isso é cinema em seu estado mais puro e bruto. Isso demonstra a qualidade do trabalho de Zilbalodis. Achei muito interessante e importante algumas escolhas do diretor e roteirista. Para começar, ele nos apresentar uma história inteira sem humanos e apenas com animais na condução da narrativa. Isso facilita o envolvimento de todos os perfis de públicos. Crianças podem entender e amar a história, assim como adultos de todas as idades, níveis educacionais, culturas e crenças. Um filme bastante democrático em sua essência, portanto.
O gato que vemos nos primeiros segundos do filme é o protagonista da história e quem vai nos conduzir a todo o momento nos desafios de um cenário apocalíptico em que as águas dominam quase todos os lugares. Esse cenário pode ter acontecido em alguma época passada ou pode ocorrer novamente no futuro. O interessante de Straume é como essa produção nos coloca perto do chão em um cenário como esse. Nossa perspectiva está limitada e em um nível próximo do solo, no mesmo campo de visão de grande parte dos personagens dessa história.
E isso nos faz muito bem. Porque ao nos colocarmos na perspectivas de outros bichos, de outros animais, que não a nossa espécie, percebemos de uma forma mais clara e ampla como uma catástrofe e a ideia de “fim do mundo” impacta a todos, sem distinção. (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu a Straume). Algo que eu achei muito interessante nesse filme é como, por boa parte do tempo, pensamos que as única espécies “favorecidas” com um dilúvio seriam as que vivem nas águas, as espécies marinhas… mas o final nos demonstra que nem isso é verdade. Porque todo cenário é mutante – o que “temos de permanente na vida é a mudança”, já nos ensinaria a base da filosofia…
Então sim, sem o cenário da catástrofe, todas as espécies tinham o seu espaço e sua forma de vida. Quando tudo muda de forma rápida e vai piorando gradativamente, algumas espécies parecem ter a vida mais fácil, enquanto outras são ameaçadas e até extintas, mas isso não dura para sempre. E no espaço da narrativa de Straume vemos isso acontecer, o que faz a gente refletir sobre a nossa própria vida, sobre nossa era e sobre o que as espécies já vivenciaram até hoje. A reflexão que esse filme nos apresenta pode parecer simples inicialmente, mas conforme pensamos na narrativa, ela se torna cada vez mais ampla.
Mais um exemplo do excelente trabalho de Zilbalodis. Mas quero voltar um pouco sobre o que o diretor e roteirista nos apresenta. Enquanto Straume está se desenvolvendo, os grandes acertos do diretor e roteiristas residem em nos apresentar uma narrativa sem pausa, praticamente, com uma história que segue adiante sempre, quase sem nos dar respiro – e quando temos esse respiro, é para alguns belos momentos de contemplação, sempre na perspectiva dos personagens -, e com um desenvolvimento de personagens impecável.
Esse desenvolvimento de personagens em Straume é outro ponto alto do filme. Cada nuance e característica do gato protagonista e dos coadjuvantes da história, uma capivara que dá vontade de abraçar e que mostra muita sabedoria e compaixão; um cão retriever que é encantador, meio bobo e tudo o mais que essa raça apresenta de características; um lêmure-de-cauda-anelada que é inquieto e acumulador; um pássaro secretário que apresenta toda sua elegância, tranquilidade e bravura; são elementos importantes para a narrativa e para nos fazer pensar em uma mensagem importante da produção.
No início do filme, vemos claramente como o gato protagonista – como todos os gatos – gosta de explorar os arredores de sua casa mas, sempre que deseja, voltar para seu “porto seguro”. Uma residência onde, claramente, vivia alguém que era apaixonado(a) por gatos e fazia esculturas e desenhos deles. Ao mesmo tempo que tem essas características, o protagonista de Straume demonstra que gosta de ficar sozinho. Enfim, essa é uma simplificação da personalidade do gato que nos conduz nessa história – mas que tem todas suas nuances e características muito bem apresentadas pelo diretor e roteirista.
Só que o que acontece durante essa produção faz o nosso gato sair totalmente de sua zona de conforto. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Ele acaba sendo salvo pela capivara, que está no comando de um barco em meio àquele dilúvio e, mesmo a contragosto, nosso protagonista acaba aceitando a convivência com as espécies que vão dividindo o espaço com ele. Essa é uma mensagem clara de Straume sobre como não sobrevivemos sozinhos – não importa sobre qual espécie a gente fale, é no coletivo e na junção de forças e de talentos que nos tornamos mais fortes.
Essa é uma baita mensagem, devemos admitir, para 2025 e além. Afinal, vivemos algumas décadas de uma cultura crescente em direção ao individualismo. E ainda que seja verdade que muitas vezes nos decepcionemos com exemplos da espécie humana e que algumas vezes pensamos que seja mais fácil viver cercados de outras espécies do que de humanos, especialmente quando analisamos o comportamento dos humanos que são mau caráter ou perversos, é verdade também que o exemplo deplorável de alguns não pode ser absorvido como o exemplo de todos. E que se queremos sobreviver, como os personagens de Straume, devemos buscar o que há de melhor de cada um, respeitando as diferenças e aprendendo com elas.
Quando não há competição e nem disputa e sim colaboração em cena, as forças individuais se somam e conseguimos resultados incríveis, como os personagens de Straume nos demonstram muito bem. Eles enfrentam diversos desafios, exploram diferentes paisagens e vestígios de diferentes culturas humanas, mas sempre que estão unidos, eles conseguem avançar. Muito interessante como o realizador de Straume nos apresenta as diferentes características de cada animal, e como nosso protagonista, inicialmente bem reticente sobre os jeitos diferentes dos colegas de aventura – especialmente em relação ao cão que mostra curiosidade e vontade de se tornar amigo do gato desde o princípio -, acaba percebendo que essas formas diferentes de cada animal se portar e se colocar no mundo não eram um problema.
Enfim, muitas lições interessantes que esse filme nos apresenta e algumas reflexões necessárias para o tempo atual e, desconfio, para o tempo futuro também. Afinal, sempre que alguém busca valorizar e ressaltar princípios como a igualdade, a liberdade e a fraternidade, entre outros, sempre há alguém que joga contra e que procura subjugar, controlar, tirar direitos e dividir. Essa luta parece ser atemporal, mas Straume está aí para nos ensinar que é preciso focar nos bons valores se quisermos viver e sobreviver.
Para resumir, um filme sem diálogos mas que nos comunica muito, o tempo todo, que apresenta muita qualidade em cada detalhe, seja na narrativa e na construção dos personagens, seja no visual; e que nos apresenta uma história que não para quase em momento algum, com uma dinâmica interessante, sem enrolação e envolvente. Quase perfeito.
O meu único “porém” sobre essa história tem a ver com um pequeno detalhe – e sim, estou sendo chata aqui. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Acho que uma produção que cuida dos detalhes, como é o caso desse filme, peca um pouco ao deixa um “fio solto”: a separação do cão retriever do restante de sua matilha. Depois dele sair com o grupo em um barco pequeno, deixando o gato sozinho em seu quintal conhecido, ele volta a aparecer em outro momento, em terra firme, mas sem nenhum de seus colegas próximos. Vamos encontrar o grupo muito depois… acho que poderíamos ter uma explicação sobre essa separação deles. Um detalhe pequeno na história, é verdade, mas que acaba sendo uma ponta solta na narrativa.
Mas fora esse detalhe, é um excelente filme. Ah sim, também chama a atenção como vemos o nosso grupo de heróis passando por resquícios de diversas culturas humanas… na prática, claro, isso seria quase impossível. Pelo menos em uma relativamente curta “passagem de tempo”. Verdade que Straume não nos conta quanto tempo passa desde o início da narrativa e até o final, mas até pensando no pouco alimento que o grupo come durante o trajeto, a ideia que a narrativa nos dá é que não se passa tanto tempo assim – e seriam necessários, acredito, meses para termos uma mudança de cenário como a que vemos no filme.
São pequenos detalhes que não tiram em nada o mérito da produção. Que, honestamente, se você ainda não assistiu, deveria. Para mim, esse é um dos melhores filmes que eu vi neste ano até aqui.
NOTA
9,8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA
Gosto muito do fato de Straume ser um filme “sem diálogos”. Ou melhor, sem diálogos humanos. Afinal, cada personagem que vemos em cena tem a sua forma de comunicação. Verdade que a “língua” que cada um deles fala não é entendida pelo outro – como se estivéssemos em uma Torre de Babel -, mas as formas de expressão que não passam pela “linguagem” típica de cada espécie acaba sendo entendida pelos demais. A linguagem não-verbal, nesse sentido, acaba fazendo toda a diferença – que é o mesmo que acontece quando humanos que falam determinados idiomas acabam tendo que se comunicar em locais em que os idiomas que eles conhecem não são falados.
Nós também, enquanto espécie que está assistindo a narrativa de Straume sem entender as “linguagens” dos personagens da trama, temos que nos contentar em tentar entender o que eles estão sentindo e pensando através de suas linguagens não-verbais. E isso é muito interessante. Um belo exercício de busca de entendimento para todos nós. Afinal, muitas vezes, o essencial não é dito com as palavras, realmente, e quanto mais entendemos sobre expressões que não passam pelo aspecto da linguagem, melhor.
O diretor e roteirista Gints Zilbalodis faz algumas escolhas realmente interessantes em Straume. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). Primeiro, porque ele encerra a produção em um diálogo franco e aberto com o início. É como se ele nos relembrasse que a vida é cíclica e que, apesar disso, o futuro nunca repete completamente o passado. Então na cena inaugural do filme temos o nosso protagonista gato olhando o seu próprio reflexo na água, sozinho, e na cena final temos ele repetindo esse gesto mas percebendo, após entender sobre o conceito da morte e da finitude, que ele não está mais sozinho. Muito lindo e poético esse final.
Aliás, importante comentar sobre esse aspecto adicional que o realizador de Straume nos traz nessa produção – para além de tudo que eu comentei antes e que são mensagens do filme. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Na reta final da trama, temos uma cena em que, após o grupo de amigos do gato e ele próprio passarem por uma tempestade, ele vê seu colega pássaro secretário alçando voo e indo para um lugar extremamente alto em terra firme. O gato, que admira o pássaro e que parece sentir-se um pouco em dívida com ele – afinal, além de defender o gato, o pássaro foi ferido com gravidade por causa disso -, vai atrás do amigo e acaba passando por uma experiência etérea. Apesar do gato e do pássaro vivenciarem o início da experiência da mesma forma, apenas o pássaro é arrebatado.
A leitura que eu fiz daquela sequência foi a seguinte (SPOILER – não leia se você ainda não assistiu ao filme): o pássaro secretário havia chegado ao ponto mais alto existente – ao menos até então na narrativa -, que simbolizava o ponto de contato “da terra com o céu” e, por ter chegado ao local em que deveria chegar, ele foi arrebatado para o céu porque havia chegado o seu momento. O gato chegou no mesmo ponto, mas “ainda não era a sua hora” de partir. Interessante que quando “a câmera” mostra o gato de volta ao solo a partir da perspectiva do alto, parece que vemos ali um solo sagrado inca. Aquela civilização tinha muito essa cultura de fazer “portais” entre a terra e o céu/infinito. Interessante. Depois que o pássaro é levado, o gato fica um pouco perdido, sem entender o que havia acontecido, mas vê sua imagem refletida na água e percebe que está sozinho novamente.
E daí temos a “pílula adicional” que Zibalodis nos entrega no final do filme. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). O gato, quando vê o amigo pássaro partir, não entende que ele havia morrido. Mas ele entende o que a morte quer dizer quando vê a baleia morrendo em terra firme após o dilúvio ter passado. O animal gigantesco, que antes havia reinado em meio ao caos, agora está morrendo de forma lenta, e sozinho. Mas então o gato chega perto e lhe dá um pouco de afeto, de carinho, para que o cetáceo gigantesco não passe por aquele momento sozinho. Eles se comunicam com o olhar, e então o gato olha para o local alto que tinha acessado e encontrado o amigo pássaro antes dele partir, e então ele entende o que aconteceu. Ele se sente triste e sozinho. Na sequência, o gato se olha refletido na água. Percebe que segue sendo o mesmo do princípio, ao mesmo tempo em que ele não é mais o mesmo. Ele mudou e aprendeu muito nessa jornada. Seus amigos então se aproximam e fazem o mesmo, e o gato percebe que é bom não estar mais sozinho. E que apesar da dor da perda e da tristeza, que ele precisa seguir em frente. Que história, meus amigos e amigas! Que história!
Straume pode ser visto como uma parábola ou como uma daquelas histórias antigas protagonizadas por animais que nos explicam muito sobre a existência, seus desafios e descobertas. Um filme com muitas camadas, que pode ser visto apenas como um ótimo entretenimento ou, para quem quer “cavar” um pouco mais nas nuances das suas entrelinhas, pode ser encarado como uma história cheia de aprendizados e de bons valores a serem seguidos.
Agora, me permitam uma pequena confissão por aqui – uma ou duas, na verdade. Sim, logo no primeiro segundo de Straume eu fiquei apaixonado pelo gato (ou seria gata?) que protagoniza essa história e que nos leva para cima e para baixo em suas aventuras – e até nos seus sonhos. Mas o personagem que realmente acabou comigo e que me enchia o coração toda vez que aparecia em cena era a capivara. Ai, sério! Que personagem incrível e que animal igualmente maravilhoso. Sou natural de uma cidade onde as capivaras são parte da nossa memória de infância e figuras presentes em diversas pedaladas que eu dou com a minha bike por aí. E a personagem que aparece nesse filme exprime muito da “personalidade” desses animais calmos, fofos e incríveis. Sou apaixonada por todos os bichos que existem, cada um com sua inteligência, sua forma de fazer e existir, e sua beleza.
A outra confissão é que eu estou feliz por ter terminado, com Straume, a minha busca por assistir aos filmes que eu considerava como essenciais do último Oscar. Ufa, lista zerada – dos indicados na categoria Melhor Filme Internacional -, então agora posso começar a pensar em outros títulos que não tem nada a ver com o passado. Talvez tenham a ver com o futuro – quem sabe algo que vai chegar no próximo Oscar? – ou, pelo menos, com o presente. Bóra lá! Olhar para a frente, sempre, porque isso é necessário e o que nos importa.
O filme é dirigido por Gints Zilbalodis, como comentei anteriormente, mas conta com um roteiro escrito por ele juntamente com Matiss Kaza e Ron Dyens. Zilbalodis faz um trabalho excelente e irretocável na direção, enquanto que o roteiro escrito por ele e por seus dois colegas é outro ponto forte do filme – descontados aqueles detalhes que citei no final da minha crítica.
Fiquei curiosa para saber mais sobre Gints Zilbalodis, já que este é o primeiro filme que eu vi do diretor. Gints Zilbalodis nasceu na Letônia, país com cerca de 1,8 milhão de habitantes que fica localizado na região nordeste da Europa, e tem 31 anos de idade. O país de origem de Zilbalodis faz fronteira com a Estônia, com a Lituânia, com a Rússia e com a Bielorrússia. Como vocês podem imaginar, a Letônia, assim como outros países com os quais essa nação faz fronteira, antes fazia parte da gigantesca e extinta União Soviética. O país inteiro tem apenas 64.589 km2. Muito pequeno, territorialmente falando, e também com sua população. Apesar disso, o país apresenta um IDH muito alto, de 0,866, e um PIB total e per capita elevados.
Antes de dirigir e escrever o roteiro de Straume, Gints Zilbalodis havia dirigido seis curtas e apenas um longa. Ele estreou na direção em 2010 com o curta Rush e havia lançado seu primeiro longa, Away, em 2019. Apesar de uma filmografia relativamente curta, Zilbalodis já apresenta 32 prêmios no currículo – inclusive o Oscar 2025 de Melhor Animação para Straume. A maior parte dos prêmios e das indicações recebidas pelo diretor e roteirista foram por Straume, mas ele recebeu indicações e prêmios também por Away e por Oasis.
Além do excelente trabalho de Gints Zilbalodis na direção e no roteiro, vale citar que ele trabalhou também na trilha sonora do filme, que é outro ponto de destaque de Straume. A trilha sonora da produção é assinada por ele e por Rihards Zalupe. Zilbalodis ainda assina a direção de fotografia, a edição e a direção de arte do filme, além de fazer parte do departamento de música da produção e de ser um dos produtores de Straume. Ou seja, ele é multitalento e multitarefa em um filme com orçamento baixo e independente.
Outras pessoas da equipe de Straume que merecem ter o seu trabalho destacado são Paula Bobrova, designer gráfica e artista conceitual responsável pela Arte da produção; Arturs Gore, Daniels Gulbis, Kristina Revziha e Konstantins Visnevskis nos Efeitos Visuais; e os 21 profissionais envolvidos com o Departamento de Animação, sendo que, deste grupo, vale citar nominalmente Thibault Delahaye como o animador líder, Léo Silly Pélissier como o diretor de animação e Pierre Mousquet como o supervisor de animação.
Antes de finalizar esse conteúdo, vale citar algumas curiosidades sobre Straume. Os realizadores do filme fizeram questão de que todas as “vozes” e os “diálogos” do filme fossem feitos a partir de animais reais. Ou seja, para cada personagem dessa produção, os realizadores trabalharam para captar seus sons específicos para, depois, inseri-los na trama. Nessa jornada para conseguir esses sons específicos, a equipe vivenciou momentos interessantes. Para conseguir o som da capivara, por exemplo, o engenheiro de som teve que ir até um zoológico e fazer cócegas nas capivaras para conseguir captar o que ele precisava. Apesar de todo esse esforço, eles acabaram não usando os sons das capivaras porque o que elas produziram “não combinava” com a personalidade da capivara do filme. O som que ouvimos em Straume da capivara teve origem, na verdade, em um filhote de camelo. 🙂
E algo mais impressionante ainda: o filme inteiro foi criado e renderizado utilizando o software gratuito e de código aberto Blender. Gente, que incrível! Um filme dessa qualidade e feito desta forma! Ganhador do Oscar, sem dúvida ele acaba sendo um baita incentivo para pessoas com ótimas ideias e roteiros saírem atrás de fazer suas próprias produções mundo afora.
Como o orçamento do filme era muito apertado – estima-se que Straume tenha custado cerca de 3,5 milhões de Euros -, não existem cenas deletadas. Ou seja, todas as cenas produzidas foram utilizadas no filme.
O desenho do gato que vemos dentro da casa onde o protagonista desta história dorme antes do cataclisma acontecer, foi feito pelo diretor Gints Zilbalodis. Essa foi a única arte conceitual que o diretor e roteirista fez para o filme, já que todo o restante foi modelado diretamente no Blender para a equipe envolvida com a produção economizar tempo.
A gata laranja de nome Miut, do designer de som Gurwal Coïc-Gallas, foi utilizada como fonte dos sons que seriam utilizados para dar vida e expressão para a protagonista desta história. Mas o processo de gravação acabou se revelando mais difícil do que o profissional esperava. A gata de Coïc-Gallas ficou muda por quase dois meses ao ver o microfone que ele utilizava para tentar gravar seus sons. Mas um dia, sozinho em casa, Cöic-Gallas encontrou um microfone antigo e decidiu seguir a gata com o equipamento, finalmente conseguindo os sons que ele precisava para dar vida e profundidade para a personagem principal de Straume.
Straume marcou histórico por ser o primeiro filme a dar um Oscar para a Letônia e por ser também o primeiro longa independente a vencer na categoria Melhor Animação.
Em uma sessão de perguntas e respostas no Festival Internacional de Cinema da Nova Zelândia, Gints Zilbalodis diz que ele e todas as pessoas da produção se referiam aos personagens de Straume apenas pelo nome dos animais, ou seja, chamando-os de “gato”, “retriever”, etc., sem que nunca os personagens tenham recebido nomes próprios. Interessante essa escolha. É como se os realizadores nos apresentassem a essência de cada espécie e não quisesse “humanizá-los” ao conferir nomes próprios para animais que são o que são, sem precisarem da gente para lhes dar nome e, assim, sentido. Eles tem sentido por serem o que são, o que é mais um ensinamento pra gente.
Antes mesmo do filme ganhar o Oscar, ele já era um fenômeno na Letônia. Por causa do sucesso da produção por lá, fizeram uma estátua do gato que protagoniza essa história e colocaram esse monumento em Riga, capital do país.
Interessante que os animais que fazem parte desta trama, no mundo real, são conhecidos por habitar partes bem diferentes da Terra. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). O pássaro secretário é conhecido por viver na savana africana, enquanto que o lêmure-de-cauda-anelada é típico de Madagascar, a capivara vive em diversos países da América do Sul e outras espécies que aparecem na trama, como os veados-axis-malhada, são típicos da Índia.
Segundo as notas de produção, a baleia que aparece no filme foi, inicialmente, planejada para ser baseada em uma baleia real mas, no final das contas, os realizadores decidiram projetá-la de forma que ela parecesse mais mítica.
Straume foi apenas o sétimo filme que não foi produzido pela Disney ou pela DreamWorks a ganhar um Oscar na categoria Melhor Animação. Pouco, hein? Espero que mais filmes independentes e de outros estúdios espalhados pelo mundo ganhem espaço no Oscar – será bom para o público e para a evolução do cinema em geral.
Por falar em prêmios, Straume ganhou nada menos, nada mais do que 56 prêmios – incluindo o já citado Oscar de Melhor Animação. Além disso, o filme foi indicado a outros 74 prêmios. Números incríveis – merecidos, devo dizer! Além de ter recebido duas indicações ao Oscar e de ter levado uma estatueta dourada para casa, Straume se destaca por ter recebido os prêmios de Melhor Filme segundo o júri e a audiência do Festival Internacional de Filmes de Animação Annecy – onde a produção também ganhou o Gan Foundation Award for Distribution e o prêmio de melhor trilha sonora; os prêmios de Melhor Filme de Animação Independente e de Realização Notável em Roteiro para um Filme de Animação no Prêmio Annie (considerado o Oscar dos filmes de animação); o Prêmio de Melhor Animação no Prêmio César (o Oscar francês); o Melhor Filme de Animação no National Board of Review; e o Globo de Ouro de Melhor Filme – Animação.
Straume é o título original de Flow. Mas o significado do título original, assim como do título que o filme recebeu para o mercado internacional é o mesmo. Straume, traduzindo, significa “fluxo”. O título nos apresenta um pouco do propósito que o filme parece ter. Não importa o desastre que aconteça, a nível individual ou coletivo, devemos “seguir o fluxo”, e esse fluxo segue em frente, sempre, infinitamente, não importa em que plano estejamos.
De acordo com o site Box Office Mojo, Straume conseguiu US$ 30,8 milhões nas bilheterias dos países onde o filme estreou. Deste total, US$ 4,8 milhões foram conquistados nas bilheterias dos Estados Unidos. O único país onde Straume foi mais assistido do que nos Estados Unidos foi a França, onde a produção fez quase US$ 5,3 milhões nos cinemas. Em seguida, depois dos EUA, aparecem o Reino Unido, com US$ 2,4 milhões, e a Espanha, com quase R$ 2 milhões.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,9 para Straume – uma nota alta para os padrões do site. Mas essa nota até poderia ser maior, a meu ver. Talvez não tenha sido porque as pessoas ainda estão acostumadas a filmes que precisam de diálogos para acontecerem e tem uma certa “resistência” para filmes mais artísticos como este. Talvez essa seja uma explicação… mas eu acho que Straume merecia uma nota maior por lá.
O site Rotten Tomatoes apresenta um nível de aprovação de 97%, fruto de 188 críticas positivas e de cinco críticas negativas linkadas por eles. Além disso, o filme aparece com o “Certified Fresh Rotten Tomatoes. O filme aparece no site Metacritic com o “metascore” 87, fruto de 31 críticas positivas, assim como apresenta o selo “Metacritic Must-see”.
Straume é uma coprodução da Letônia com a Bélgica e a França.
CONCLUSÃO
Um filme lindo e com uma narrativa interessante e envolvente. E o melhor de tudo: com uma história que pode ser acompanhada por públicos de todas as idades e que, para cada pessoa, apresenta mensagens diferentes. Straume nos apresenta um gato protagonista que é acompanhado por uma turma de coadjuvantes igualmente interessante, destacando a potência e o valor da diversidade, além da necessária resiliência e desejo pela sobrevivência que todos devemos ter.
Além disso, claro, o filme nos apresenta o já bem discutido cenário desolador de um futuro apocalíptico causado pelos desastres naturais. Tudo isso visto sob a perspectivas de um gato e de outros bichos, com diversos cenários incríveis sendo desbravados por eles, é inspirador e, ao mesmo tempo, uma grande sacada. Um dos grandes filmes da última temporada do Oscar, sem dúvidas. Eu diria que o segundo melhor da temporada, atrás apenas de Ainda Estou Aqui. Precisa ser visto, caso você não tenha feito isso ainda.
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