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Ainda Estou Aqui – I’m Still Here


Um filme com tantas camadas que é até difícil escolher com o que começar. Mas é preciso iniciar, porque precisamos falar muito sobre Ainda Estou Aqui. Uma produção essencial, que deveria ser obrigatória para brasileiros e para tantas outras pessoas que se interessam pelo Brasil e que estão espalhadas mundo afora. Um filme sobre um capítulo tenebroso e criminoso da nossa história, mas que trata sobre questões muito humanas. Uma produção sensível, como só um filme de Walter Salles consegue ser, com uma interpretação primorosa de Fernanda Torres. Mas tão importante quanto o filme e o resgate que ele faz do abjeto regime militar que tivemos neste país, é o foco que a produção dá para Eunice Paiva. Que mulher! Que filme!

A HISTÓRIA

Antes mesmo da primeira cena aparecer, ouvimos o barulho do mar. Em seguida, aparece a informação de que a história se passa no Rio de Janeiro, no ano de 1970, durante a ditadura militar. Em seguida, vemos a primeira cena do filme, com Eunice Paiva (Fernanda Torres) no mar do Rio. Ela está boiando, mas tem a paz interrompida pelo barulho de um helicóptero do Exército sobrevoando a praia. Enquanto isso, vemos um grupo de crianças jogando bola em uma rodinha.

Perto deles, um grupo de jovens joga vôlei. Um cachorro aparece e atrapalha quem está na quadra de areia. Uma das jogadoras pega o cachorro e pede para Marcelo (Guilherme Silveira) ficar com ele, tirar o cão dali. Marcelo corre até outra irmã e pede para ficar com ele, levar o cachorro pra casa. A irmã diz que a mãe não vai querer. Marcelo corre e vê que a mãe está no mar, então sai correndo para casa. Eles moram perto. Chegando lá, ele pergunta sobre o pai, Rubens Paiva (Selton Mello), que está no escritório. Marcelo pede para ficar com o cachorro. Em seguida, vemos um grupo de jovens em um carro, fumando, cantando. Uma das ocupantes do carro é Veroca (Valentina Herszage), filha mais velha de Eunice e Rubens, que filma o que acontece com uma câmera da época. O grupo será parado em breve em um túnel, em uma operação de repressão da ditadura.

VOLTANDO À CRÍTICA

(SPOILER – aviso aos navegantes que o texto a partir deste ponto conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Ainda Estou Aqui): Então, eu não consegui esperar. Verdade que não assisti a Ainda Estou Aqui no primeiro dia em que o filme chegou aos cinemas, mas procurei um dia em que o cinema da minha cidade faz promoção para ir lá logo na primeira semana desta produção em cartaz.

Por óbvio, porque Ainda Estou Aqui é o representante do Brasil no Oscar 2025. Mas, mais que isso, porque ele é apontado como um dos dois filmes mais fortes na disputa. Para nosso desprazer, contudo, ele não é o favorito. Digamos que corre por fora, mas logo atrás do favorito. Quem está à frente de Ainda Estou Aqui? O representante da França na disputa, o filme Emilia Pérez, dirigido por Jacques Audiard, diretor francês de 72 anos que tem uma filmografia bem interessante no currículo – falo um pouco mais sobre ele mais abaixo.

Bem, sabemos que o filme francês é o favorito. Mas o que podemos falar sobre o representante brasileiro na disputa? Que Ainda Estou Aqui é um filme incrível, muito, muito sensível, como apenas um cineasta da qualidade de Walter Salles poderia nos apresentar. Do primeiro até o último minuto deste filme, ficamos completamente envolvidos pela história da família Paiva e sobre o que ela nos apresenta sobre os anos de chumbo que o Brasil viveu naquela época, a década de 1970.

Agora, uma pequena confidência pessoal aqui – já que esta produção fala tanto de gente, de pessoas, de humanidade. Eu nasci no final daquela década. Era criança, portanto, quando a infame ditadura militar acabou, em 1985. Eu tinha seis anos de idade e, por morar no Sul do país, não vivenciei o que vemos em cena em Ainda Estou Aqui. Ainda assim, por óbvio, conheço parte dessa história, nem tanto pelo que aprendi na escola, já que realmente nós nunca nos debruçamos direito na história do nosso país, mas principalmente depois, lendo livros, vendo filmes e documentários sobre aquele período.

Ainda assim, como já falei anteriormente aqui neste blog – inclusive em críticas como a do filme Argentina, 1985 (o texto sobre esse filme pode ser acessado aqui) -, nos falta mais filmes a respeito daquele período infame. Não importa o que determinadas “castas” da nossa sociedade alegam, a ditadura foi criminosa e nojenta. Ninguém nunca vai me convencer do contrário. Essa crítica, contudo, não é para falarmos sobre isso, mas sobre o que Ainda Estou Aqui nos apresenta sobre aquela época e a forma como ele faz isso.

Como comentei, apesar de ter comprado os livros de Elio Gaspari – os quais eu ainda não tive tempo de ler – e de ter me aprofundado um pouco mais sobre a era das trevas da ditadura militar no Brasil, eu não sou nenhuma grande conhecedora e, muito menos, uma especialista no tema. Assim, até assistir a Ainda Estou Aqui, eu sabia sim que Rubens Paiva tinha sido uma das vítimas do regime de exceção e de repressão política, mas eu não tinha lido ao livro de seu filho ou sabia em detalhes sobre como ele tinha sido levado de casa, torturado, considerado “desaparecido” e tudo o mais.

Assim, boa parte da narrativa de Ainda Estou Aqui sobre o caso é novidade para mim. Como acho que deve ser para grande parte do público – seja ele brasileiro, seja, especialmente, estrangeiro. Mas o que o filme nos conta, em suma? A história particular de uma família, com a qual a gente pode facilmente se identificar, e que ajuda a contar a história de tantas outras famílias naquela época. Pessoas que foram arrancadas de suas casas, a exemplo de Rubens Paiva, sem violência, enquanto outras foram retiradas de seus lares com violência.

Muitos, como ele, foram levados para “dar um depoimento”, para “esclarecer algumas coisas”, à luz do dia, saindo pela porta da frente, tendo tempo de trocar de roupa, de dar um beijo na esposa, e nunca mais voltaram. E as famílias, a exemplo do que aconteceu com Eunice e seus filhos, nunca realmente souberam o que aconteceu.

Vocês já imaginaram isso? Passar por isso? Pois o grande trunfo de Ainda Estou Aqui é justamente esse. A direção inspirada de Walter Salles e o roteiro escrito com esmero por Murilo Hauser e Heitor Lorega, a partir do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, nos coloca dentro da intimidade daquela família e nos faz vivenciar aqueles dias praticamente como uma outra pessoa daquela família. Impossível não se colocar no lugar deles. Impossível não se colocar, em especial, no lugar da protagonista, a maravilhosa Eunice Paiva.

Esse filme, aliás, é muito sobre ela. Claro que Rubens está presente, não apenas quando o personagem está em tela, mas depois também – estamos sempre lembrando dele e, como Eunice por boa parte do tempo, aguardando sua volta, mesmo a gente sabendo que isso não vai acontecer, diferente dela. Só que ela, Eunice, rouba a cena sempre que aparece. Um trabalho primoroso de Fernanda Torres, é verdade. Se o mundo fosse justo, certamente ela seria indicada ao Oscar de Melhor Atriz por esse papel. Mas isso será bem difícil de acontecer.

Mas enfim, Ainda Estou Aqui é muito sobre ela. E tinha que ser mesmo. Afinal, ela foi uma mulher gigante, fantástica, destas que tiramos o chapéu sem pensar duas vezes. Como tantas outras mulheres fortes e incríveis que esse país pariu. Porque ser mulher nesse país, em linhas gerais, não é nada fácil. Mas tem algumas mulheres, como Eunice, que tem que ser ainda mais porreta. Não tem outra possibilidade para elas.

Eunice não apenas já era gigante antes de Rubens desaparecer, como foi ainda mais gigante após ele ter saído de casa tendo a esposa como testemunha. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Ela foi muito guerreira ao resistir ao que fizeram com ela depois, interrogando-a por diversos dias seguidos e deixando ela presa longe dos filhos por nada a não ser por sadismo. Naquele tempo, ela temia pela filha que tinha sido levada junto com ela, com medo do que os militares poderiam ter feito com ela, ao mesmo tempo em que pensava nos filhos que ficaram em casa… temendo se voltaria a vê-los.

Toda aquela sequência foi conduzida com maestria por Walter Salles. Mas antes e depois daquelas sequências teríamos cenas igualmente marcantes. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Uma das que mais me marcou foi quando Eunice planejou levar os filhos para tomar sorvete, em um dia, qualquer, e manteve a promessa mesmo depois de ter recebido a notícia de que o marido tinha sido morto. Não tinham detalhes sobre como isso teria sido feito, e nem sabiam dizer onde estava o corpo, mas naquele momento acabaram-se as esperanças de Eunice em um dia ver a Rubens novamente.

Mesmo tendo recebido notícia tão dura, Eunice disfarçou a dor para os filhos e foi com eles tomar sorvete. A sequência em que ela olha para as outras mesas e vê as outras famílias tendo ótimos momentos é uma das mais pesadas, emocionantes e incríveis da produção. Impossível não sentir a dor de Eunice naquele momento. Da minha parte, impossível não se emocionar. Assim como na reta final da produção, quando vemos a filmagens e fotos da família que foi destruída por causa de um regime criminoso e absurdo.

Sim, vemos com Ainda Estou Aqui uma história particular. Mas que também, apesar de ser tão particular, por falar de ausência, de perda, de vazio, de família, de união, de doação, de amor, torna-se uma história universal. Sem grandes discursos, preferindo mostrar o exemplo de uma mulher que soube manter-se firme, apesar de toda a dor da perda do marido, que foi muito valente ao criar cinco filhos sozinha a partir de então, tendo o cuidado de preservar os mais novos sobre tudo que estava acontecendo, Ainda Estou Aqui é um libelo forte contra aquele tempo em que um regime podia decidir quem vivia ou morria de forma sumária, sem acusações, julgamentos, direito de defesa, nada.

Acho que nosso país precisava de um filme como esse. Uma produção sensível, que pode falar com todos os públicos, com todas a idades, para abordar um tempo obscuro da nossa história. Mas não com uma perspectiva de denúncia ou “panfletária”, mas a partir da ótica de uma mulher fantástica, que merece o destaque que recebeu nessa produção. Sem dúvida, Eunice Paiva foi uma heroína, uma mulher que merece ser admirada e conhecida. Que bom que tivemos isso com esse filme! Que bom que o filho dela, Marcelo Rubens Paiva, fez essa homenagem para sua mãe através do livro que publicou em 2015.

Para mim, é um verdadeiro presente temos a oportunidade de assistir a Ainda Estou Aqui e refletir sobre nosso passado. Como já comentei anteriormente, na crítica de Argentina, 1985, acho um absurdo o Brasil não ser capaz de olhar para a época tenebrosa da ditadura militar e revisitar esse passado de forma franca, abolindo a infâmia da anistia e, finalmente, julgando quem cometeu crimes naquele período.

Para ser um país mais maduro, deveríamos fazer isso. Mas como nossa democracia é frágil, pouco madura, o que foi comprovado nos últimos anos, infelizmente não temos nenhuma perspectiva para que essa visão revisitada da nossa História seja feita de forma correta e saudável. Não sei se um dia seremos capazes de fazer isso. Talvez eu não esteja viva para ver. Mas seria bom. Para o país, como um todo, e para as famílias que foram vítimas de um regime de exceção absurdo como aquele que vivemos entre os anos de 1964 e 1985.

Ainda Estou Aqui é um filme emocionante por nos contar uma história importante daquele período para muito além do que vemos nos bancos escolares ou na maior parte dos livros. Apenas uma visão intimista para nos transportar para aquela época, para aquele cenário de terror e de resistência, de forma tão eficaz. Resistir, naquela era e até hoje, passa muito por amar. Eunice fez isso de forma exemplar. Ela teria motivos para deixar-se embrutecer, mas não fez isso. Pelo contrário. Enquanto outros queriam que ela chorasse e esperneasse, ela mostrou altivez e sorriu. Decidiu seguir vivendo, por ela e pelos filhos. Também pelo marido, que tinha tanta alegria e vontade de viver.

Amar, sorrir, viver. Tudo isso é resistir. Especialmente para quem tem as trevas como adversário. Eunice nos dá uma aula sobre isso nesse Ainda Estou Aqui. Um filme rico em camadas, feito com muito esmero e com muita gente talentosa à frente e por trás das câmeras. Um verdadeiro presente do cinema nacional para todos nós.

NOTA

10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA

Walter Salles é um diretor brilhante. Um dos melhores do cinema nacional desde sempre. Como considero que o cinema brasileiro tem, a exemplo do cinema francês e do cinema de outros países, uma história relevante para contar e, consequentemente, relevância dentro da história do cinema mundial, podemos dizer que desde que Walter Salles começou a dirigir, em 1986, de lá para cá ele se tornou um cineasta destes que merece ser acompanhado.

Verdade que eu não assisti a todos os filmes que Walter Salles já dirigiu. Comecei a acompanhá-lo em 1991, com o filme A Grande Arte. Para quem não conhece muito o diretor, sugiro buscar e assistir a Terra Estrangeira, de 1995; o estupendo e emocionante Central do Brasil, de 1998, que deu visibilidade mundial para o diretor; e Abril Despedaçado, de 2001. Esses talvez sejam os filmes essenciais do diretor, juntamente com esse Ainda Estou Aqui. Esse último, para mim, o seu melhor filme – ou um dos dois melhores, talvez, juntamente com Central do Brasil.

Por tudo que comentei há pouco, é mais do que justo pensar que Ainda Estou Aqui pode chegar ao Oscar e conseguir uma vaga na disputada categoria Melhor Filme Internacional. Há muita torcida, e seria o ideal também, Fernanda Torres ser indicada na categoria Melhor Atriz, a exemplo do que sua mãe, a gigante Fernanda Montenegro, conseguiu anteriormente por seu papel em Central do Brasil. Faria muito sentido e seria muito justo Ainda Estou Aqui repetir o feito da produção dirigida por Walter Salles e lançada nos cinemas em 1998.

A direção de Walter Salles em Ainda Estou Aqui é uma aula de cinema. Um primor. Ele reconstitui diferentes épocas com muito cuidado e atenção em cada detalhe e, sobretudo, valoriza muito o trabalho do ótimo elenco que ele escalou para esta produção. Por óbvio, o trabalho que mais é comentado, e com razão de ser, é o de Fernanda Torres. A atriz está incrível, em uma interpretação totalmente condizente, inspirada, cheia de detalhes e nuances. Lembra muito o melhor do cinema francês, tão acostumado a essas qualidades. Mas é cinema brasileiro – porque sim, temos alguns filmes com esse mesmo perfil.

Mas além de Fernanda Torres, temos um ótimo elenco que a acompanha. Selton Mello rouba a cena cada vez que aparece como Rubens Paiva. Pena que, pela história que é contada, ele não fique mais tempo em cena. Mas, mesmo não estando presente de forma material, claro que ele segue ali, nas lembranças e na busca daquelas pessoas que ele deixou. A divina Fernanda Montenegro faz uma participação especial na sequência final do filme como Eunice Paiva em seus últimos anos. Uma interpretação poderosa, mesmo sem nenhuma fala.

Além de Fernanda Torres e Selton Mello, nomes centrais da produção, é preciso destacar o elenco que faz os filhos do casal. Especialmente na fase em que Rubens Paiva desaparece. Estão excelentes em seus papéis os atores Valentina Herszage como Veroca, a filha mais velha de Eunice e Rubens; Luiza Kosovski como Eliana, a segunda filha mais velha e a que acaba sendo levada também para dar depoimento para os militares; Bárbara Luz como Nalu, terceira filha do casal; Cora Mora como Babiu e Guilherme Silveira como Marcelo, estes dois os filhos mais jovens dos protagonistas e que são bastante poupados por Eunice na época do desaparecimento do marido.

Apesar das crianças terem sido preservadas, por óbvio elas acabaram, em algum momento, percebendo que o pai não voltaria mais. Tem uma sequência específica no filme em que, já adultos, os filhos falam sobre isso, que é de arrepiar. Qualquer ausência e perda é muito dura, difícil de assimilar, leva seu tempo para ser “absorvida”, mas quando o desaparecimento ocorre da forma como foi, sem explicação, de uma hora para a outra, a tristeza, a falta de respostas e a dor certamente são muito maiores.

O elenco que comentei acima, dos atores que interpretam os filhos do casal Eunice e Rubens em 1971, quando ele é levado pela ditadura para nunca mais voltar, faz um trabalho estupendo. Para mim, irretocável. Esses mesmos personagens são interpretados depois, na fase em que Eunice consegue uma pequena vitória, por outro grupo de atores. O mesmo sobre a reta final da produção, quando Eunice, já com Alzheimer, vê na televisão uma notícia sobre a Comissão Nacional da Verdade. Vale citar esse grupo de atores: Maria Manoella interpreta Veroca; Gabriela Carneiro da Cunha interpreta Nalu; Marjorie Estiano interpreta Eliana; Antonio Saboia interpreta Marcelo; e Olívia Torres interpreta a Babiu.

Entre os personagens secundários da trama, que não fazem parte da família, mas que orbitam ao redor dos Paiva, especialmente nos anos 1970, destaco, em especial, Pri Helena como Maria José, a empregada que fazia parte do núcleo familiar até pouco depois do sequestro de Rubens Paiva. Ela está excelente no papel e nos representa em muitos momentos. Nome a ser destacado daquela fase também.

Outros atores que fazem parte daquela fase e que merecem ser citados são Humberto Carrão como Felix; Charles Fricks como Fernando Gasparian; Maeve Jinkings como Dalva Gasparian; Dan Stulbach como Baby Bocayuva, sócio na empresa de Rubens Paiva; Camila Márdila como Dalal Ahcar; Daniel Dantas como Raul Ryff; e Helena Albergaria como Beatriz Ryff. É um elenco estrelado e cheio de nomes talentosos mas que, e esse seria o único porém que eu faço ao filme, nós não entendemos muito bem que papéis jogam naquela época.

Para além de serem o grupo que circunda a vida dos Paiva na época, o que eles faziam? Não sabemos, ao menos não ao ver ao filme. Ok, talvez alguma explicação por caracteres inseridos na produção, recurso bem empregado em outros filmes, tiraria a atenção do principal, que era a história humana que está no cerne da trama. Talvez. Mas é fato que esses vários personagens secundários ficam um pouco perdidos na história. Não entendemos bem o contexto deles naquela época. Algo que tira a força de Ainda Estou Aqui? Não, acho que não. Apenas um comentário que achei necessário fazer.

Sobre a parte técnica do filme, além da aula de direção de Walter Salles, devo destacar o ótimo roteiro da dupla Murilo Hauser e Heitor Lorega. Eles fazem um belo trabalho, sem exageros, sem serem muito didáticos, buscando, essencialmente, o caráter humano e histórico dessa história muito particular. Através do site Amazon, peguei uma amostra do livro de Marcelo Rubens Paiva. Gostei muito do começo do livro. Ele escreve maravilhosamente bem e tem esse olhar super humanista em sua escrita. Certamente será um livro que irei comprar neste final de ano para conferir depois. Me interessou muito.

Claro que é muito diferente adaptar um livro tão pessoal como esse para o cinema, mas acho que Hauser e Lorega fazem um belo trabalho nesse sentido. Para mim, eles acertaram muito no ritmo da produção e na forma como dividiram ela, dando muito mais destaque para os anos 1970, quando o principal da história acontece. O restante, ficou bastante resumido, mas dá para entender a escolha por esse caminho e não para fazerem um filme mais longo. Eu teria visto um filme mais longo, mas sei que o grande público não é tão afeito a produções muito longas, então deu para entender a escolha dos realizadores. Fiquei interessada em ir atrás de outros filmes com roteiros deles.

Por falar em acertos do roteiro de Ainda Estou Aqui, gostaria de destacar uma parte. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Me tocou em especial a sequência em que Eunice encontra algumas filmagens da família e começa a reproduzir aquelas cenas. Há alguns meses, perdi a pessoa mais importante da minha vida, a minha mãe. Então revisitar lembranças, como Eunice faz, me tocam demais. As cenas da família na praia, com os filhos ainda crianças, nos remete para um tempo que não existe mais, a não ser na lembrança. Eles foram felizes. Eles sabiam que eram felizes, então. A felicidade não dura para sempre, mas ela poderia ter durado muito mais naquela família. Tantos momentos bons foram roubados deles. Aquelas cenas, naquela sequência, e depois imagens reais da família que vemos no final são de cortar o coração. Arrebatador. Emocionante. Inesquecível.

Entre os aspectos técnicos da produção, além da direção e do roteiro, vale destacar a excelente direção de fotografia de Adrian Teijido; a ótima edição de Affonso Gonçalves; a trilha sonora muito interessante e bem pensada, planejada em cada detalhe, de Warren Ellis; o design de produção de Carlos Conti; a decoração de set de Paloma Buquer e Tatiana Stepanenko; os figurinos de Helena Byington e Cláudia Kopke; a maquiagem feita por oito profissionais liderados por Marisa Amenta; o Departamento de Arte com nove profissionais liderados por Juliana Tolentino; os efeitos especiais de Sergio Farjalla Jr. e os efeitos visuais realizados por 16 profissionais – afinal, foi necessário modificar diversos cenários para reproduzir um Rio de Janeiro de 50 anos atrás. Todos muito competentes e importantes para que esse filme tivesse a qualidade que ele tem.

Pode ser que eu esteja ficando um pouco surda, após ouvir tantas coisas em fone de ouvido, mas eu senti um pouco de dificuldade de entender algumas falas da produção. Eu não sei se, de fato, como infelizmente acontece com alguns filmes do cinema nacional, faltou em alguns momentos a equipe técnica caprichar um pouco mais na captação de som, ou se sou eu mesmo que não estou com aquela audição perfeita. Enfim, se alguém mais notou isso e quiser comentar, agradeço. Mas especialmente em algumas sequências com o ator Humberto Carrão eu tive dificuldade de entender o que ele falava. Isso não aconteceu em cenas com diversos outros atores, mas em algumas com ele, realmente não consegui entender o texto falado. Problema de dicção do ator ou da captação de som? Não sei.

Antes de ir para a reta final destas observações de pé de página, quero fazer aquele parênteses sobre o maior concorrente de Ainda Estou Aqui no Oscar. Emilia Pérez, como comentei rapidamente antes, é um filme do diretor Jacques Audiard. Aos 72 anos de idade, Audiard é um veterano do cinema, respeitado por diversos filmes realmente interessantes. Apesar de sua idade, ele não começou tão jovem assim. Audiard estreou na direção com Regarde les Hommes Tomber, lançado em 1994 – ele tinha 42 anos na época.

No total, Audiard tem 17 títulos no currículo como diretor, sendo 10 filmes, três vídeos musicais, um curta, dois vídeos e uma série para a TV. Entre os filmes que ele dirigiu, tenho comentado aqui no blog as produções Un Prophète (com crítica neste link) e De Rouille et d’Os (com texto que pode ser acessado aqui). O diretor tem no currículo dois prêmios BAFTA, além de outros 69 prêmios em diferentes festivais, mas nunca foi indicado ao Oscar.

Emilia Pérez, filmes dirigido por Audiard que muitos consideram como o super favorito para o Oscar de Melhor Filme Internacional na próxima premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, já tem 18 prêmios no currículo, sendo o principal deles, possivelmente, o Prêmio do Júri do Festival de Cannes. Falarei dele quando puder conferir a produção, logo mais. 😉

Ainda Estou Aqui estreou no dia 1º de setembro de 2024 no Festival de Cinema de Veneza. Até o dia 23 de novembro de 2024, o filme faria, ainda, uma trajetória de mais 20 festivais e mostras de cinema pelo mundo, incluindo os importantes festivais de Toronto, San Sebastián, Zurique, Nova York, Mill Valley, BFI Londres, São Paulo e Rio. O filme está em uma verdadeira campanha para chegar ao Oscar. E não tem outra forma de chegar lá se não for assim. Estão certíssimos!

Até o momento, dia 17 de novembro de 2024, Ainda Estou Aqui acumula oito prêmios e quatro indicações. Vale citar os prêmios que o filme recebeu: Prêmio da Audiência – Menção Honrosa no Masters of Cinema do Festival de Cinema da Filadélfia; Prêmio da Audiência de Melhor Ficção Brasileira no Festival Internacional de Cinema de São Paulo; Prêmio da Audiência no Galas & Special Presentations no Festival Internacional de Cinema de Vancouver; o Prêmio SIGNIS para Walter Salles, o Golden Osella de Melhor Roteiro e Prêmio Green Drop para Walter Salles, todos no Festival de Cinema de Veneza; o Prêmio da Audiência no World Cinema do Festival de Cinema de Mill Valley; e o Prêmio de Melhor Atriz – Filme Internacional no Latino Cinema & Television para Fernanda Torres conferido pelo Critics Choice Awards Celebration of Cinema & Television.

Chama bastante a atenção que grande parte dos prêmios conferidos para o filme até o momento foram dados pelo público. Parece que a audiência está gostando mais da produção do que os críticos.

Agora, vale citar algumas notas de produção. Ainda Estou Aqui foi um projeto muito pessoal para Walter Salles. Dizem as notas de produção do filme que o diretor era amigo da família Paiva na adolescência. Ele recorda como, aos 13 anos de idade, ele percebeu que a casa de Eunice e de Rubens, que era sempre muito alegre e cheia de amigos, mudou radicalmente após o sequestro do pai de família, passando a ser sempre fechada e vazia. Walter Salles teria levado pouco mais de quatro anos para desenvolver Ainda Estou Aqui.

Ainda Estou Aqui foi lançado no Brasil no dia 7 de novembro de 2024, data em que Eunice Paiva faria 95 anos, se estivesse viva.

Eunice Paiva já era muito magra, quando os fatos que vemos neste filme aconteceram, mas ela teria perdido ainda 11 quilos durante os 12 dias em que ficou presa. Para interpretar o papel dela neste filme, a atriz Fernanda Torres, que também é magra, perdeu cerca de 10 quilos para representar o que aconteceu com Eunice depois da prisão.

Interessante, e eu só soube ao ler as notas de produção, que o roteiro de Ainda Estou Aqui não utilizou apenas o livro homônimo como base. Não. Os roteiristas se basearam nos livros Ainda Estou Aqui e Feliz Ano Velho, além de terem feito entrevistas com familiares e amigos da família Paiva.

Enquanto Fernanda Torres perdeu 10 quilos para fazer sua personagem, Selton Mello teve que engordar. As notas de produção dizem que o ator ganhou cerca de 20 quilos para interpretar Rubens Paiva.

Uma das coisas boas de Ainda Estou Aqui é que o filme, certamente, fará muitas pessoas irem atrás de mais informações sobre aqueles tempos criminosos e sombrios da ditadura militar. Antes de fechar esse conteúdo, gostaria de recomendar duas leituras: esse texto de Ruan de Sousa Gabriel para O Globo no qual ele fala com os filhos de Eunice e Rubens Paiva sobre o filme; e esse texto de Aline Ribeiro, publicado em 2015 na Época, no qual Marcelo Rubens Paiva fala sobre o livro Ainda Estou Aqui.

Os usuários do site IMDb deram a nota 8,9 para Ainda Estou Aqui. Uma nota excelente, muito, mas muito mesmo acima da média do site. Bem bacana isso! O site Rotten Tomatoes, por sua vez, apresenta 21 críticas positivas e duas negativas para a produção, o que garante para este filme o nível de aprovação de 91% e uma nota média de 7,1. O site Metacritic apresenta o “metascore” 79 para este filme, fruto de sete críticas positivas e de quatro críticas medianas.

De acordo com o site IMDb, Ainda Estou Aqui teria custado cerca de R$ 8 milhões (o equivalente a US$ 1,38 milhão). Conforme o site Filme B, apenas no Brasil o filme já teria faturado, até o dia 15 de novembro e após duas semanas de exibição, R$ 13,7 milhões e atraído 655,3 mil espectadores para o cinema – eu fui uma destas espectadoras. Um sucesso de bilheteria no país. Mais que merecido. Espero que o filme siga nessa trajetória de atrair o público para as salas e deixar outras produções grandes de Hollywood em segundo plano.

Publiquei esse conteúdo ontem, dia 18 de novembro, e hoje, dia 19, recebi uma atualização sobre o desempenho de Ainda Estou Aqui nos cinemas. Segunda a assessora de imprensa Anna Luiza Muller, o filme fez 1,057 milhão de espectadores em 11 de exibição nos cinemas brasileiros. Conforme o vice-presidente sênior da América Latina e diretor-geral da Sony Pictures no Brasil, André Sala, o público no segundo final de semana do filme foi 31% maior do que no primeiro final de semana. Que legal. Fico feliz que a propaganda boca a boca está surtindo efeito. Ainda Estou Aqui merece chegar a cada vez mais pessoas mesmo.

Para quem assistiu a esse filme e ficou curioso(a) para saber mais sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar do nosso país, recomendo alguns textos que considero relevantes. Para começar, acho interessante a consulta a essa página especial da Comissão da Verdade da PUC-SP que trata sobre os mortos e desaparecidos durante aqueles anos de regime de repressão.

Depois, achei muito interessante esse site sobre Mortos e desaparecidos políticos criado pelo Memorial da Resistência de São Paulo porque ele traz a lista dos nomes com uma breve descrição de cada pessoa que foi morta ou ficou “desaparecida” durante o regime militar. Para quem quiser se aprofundar um pouco mais no tema, temos também o Dossiê Ditadura, publicado (e acessível através deste link) pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.

Segundo esse conteúdo da Agência Brasil produzido por Michèlle Canes, publicado em 2014, a Comissão Nacional da Verdade confirmou, em seu relatório final, que a ditadura militar do Brasil provocou 434 mortes e desaparecimentos – deste total, 210 pessoas ainda estão “desaparecidas”. Agora, imaginem o que vemos em tela com Ainda Estou Aqui multiplicado mais de 200 vezes. Inacreditável. Revoltante. E o pior mesmo é que não temos perspectiva dos responsáveis um dia serem responsabilizados. Não importa se eles estão vivos ou já morreram. Mas seus nomes deveriam ser listados e eles deveriam ser julgados. Ao menos isso.

CONCLUSÃO

Um filme super sensível, cheio de história, nuances, vida, ausência e saudades. Ainda Estou Aqui ao mesmo tempo trata de uma parte importante da história do Brasil e desvela um enredo universal. Faz uma homenagem, ainda que um pouco tardia, para um mulher incrível, formidável, uma de tantas brasileiras que souberam segurar as pontas e tocar em frente mesmo após ter sido apunhalada no coração. Para mim, se não é o melhor filme do ano, certamente é um dos melhores. Uma produção nacional que nos enche de orgulho por cada detalhe. Ainda Estou Aqui é um daqueles filmes que vamos guardar na memória por muito tempo. Simplesmente, assista.

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Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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