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Inside Job – Trabalho Interno


Vivemos ainda na sombra de 2008. Não tivemos um ano tão decisivo neste novo milênio do que aquele em que bancos colapsaram e uma crise econômica ainda sem fim ganhou forma e fôlego. Ok, tivemos 2001 e os ataques terroristas nos Estados Unidos, que trouxeram uma onda de medo e represálias. Mas se analisarmos o que teve um efeito multiplicador mais extenso, com a capacidade de afetar a vida de todas as pessoas, direta ou indiretamente, no mundo inteiro, sem dúvida foram os eventos que começaram antes de 2008, mas que naquele ano se mostraram evidentes com todas as suas garras. O documentário Inside Job, ganhador do último Oscar, tenta explicar um pouco do que aconteceu em 2008. As causas da crise financeira e econômica que continua até hoje. Um filme ousado, que dá nome aos bois, mas que nem por isso consegue explicar o quadro inteiro do problema.

A HISTÓRIA: Cenas da Islândia. E dados sobre o país: população, 320 mil; produto interno bruto, US$ 13 bilhões; perdas bancárias, US$ 100 bilhões. Um país que servia como exemplo para o mundo por sua democracia estável, pelo alto padrão de vida dos habitantes e pelo baixíssimo nível de desemprego e dívida pública e que viu este quadro mudar nos últimos anos. O filme começa mostrando como a situação na Islândia foi se deteriorando. Mostra as decisões políticas fundamentais para que isso acontecesse, iniciadas no ano 2000. As políticas de desregulamentação adotadas pelo governo e a privatização dos três maiores bancos do país foram um divisor de águas na história da Islândia. Depois de mostrar cenas com belezas naturais do país, a exploração da multinacional Alcoa de parte destes recursos, o filme mostra manifestações da população indignada de setembro de 2008. O diretor explica que os três bancos privatizados, que nunca tinham operado fora do país, em cinco anos emprestaram US$ 120 bilhões, 10 vezes a economia da Islândia. Criaram novos ricos da noite para o dia, sem critério. Inflacionaram o mercado, criando bolhas de valorização irreal – multiplicando o preço de ações e o valor dos imóveis. O exemplo da Islândia serve de ponto de partida para mostrar a onda que se espalhou por diversas economias, baseada nos mesmo princípios, e que contaminou o mundo, nos levando a maior crise econômica da história desde a quebra da Bolsa de Nova York em 1929.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Inside Job): Onde há fumaça, há fogo. Essa parece ser a leitura mais óbvia da primeira cena de Inside Job. O diretor e roteirista Charles Ferguson tenta mostrar o que se esconde por trás da cortina de fumaça. E consegue, mesmo que em parte. Ele dá nome a muitos responsáveis pela crise financeira e econômica desencadeada em 2008, mas senti falta dele aprofundar-se mais. Não apenas entrevistando muitos destes responsáveis ou pessoas próximas a eles, mas também em ampliar um pouco mais o foco. Ficaram de fora deste filme, por exemplo, os especuladores individuais ou corporativos.

Mesmo assim, descontadas estas “ausências”, eis um grande filme. Especialmente por seu caráter didático e pelos entrevistados interessantes que o diretor conseguiu abarcar. Na parte da Islândia, ele entrevista a Gylfi Zoega, professor de Economia da Universidade da Islândia; Andri Magnason, escritor e cineasta; e Sigridur Benediktsdottir, integrante do comitê especial de investigação do Parlamento da Islândia. Eles fazem uma leitura concisa do impressionante o efeito devastador que a crise teve naquele país. Depois que os bancos locais quebraram, no final de 2008, o desemprego no país triplicou em seis meses. Triplicou! Ok que a Islândia é um país com uma população “pequena”, de 320 mil habitantes, mas já imaginaram o desemprego triplicar, seja no coletivo que for, em apenas seis meses? Impressionante.

Mas como afirma Zoega em um trecho de sua entrevista, o que aconteceu na Islândia ocorreu também em outros países. Como Nova York, por exemplo. E a partir daquela introdução islandesa, Inside Job se concentra na crise dos Estados Unidos. Entra na mira de Ferguson entrevistados como Paul Volcker, presidente do Banco Central dos Estados Unidos; Dominique Strauss-Kahn, então diretor geral do FMI; George Soros, um dos maiores investidores (e bilionários) da História; Barney Frank, presidente do Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos; David McCormick, sub-secretário do Tesouro da administração Bush; Scott Talbott, lobista chefe para o Financial Services Roundtable; Andrew Sheng, chefe da assessoria da comissão regulatória do Banco Chinês; Lee Hsien Loong, primeiro ministro de Cingapura; Christine Lagarde, então ministra de Finanças da França; Gillian Tett, editora do The Financial Times; Nouriel Roubini, professor da New York University Business School; Glenn Hubbard, conselheiro econômico chefe da administração Bush da Columbia Business School; Eliot Spitzer, governador de Nova York; Samuel Hayes, professor emérito da Harvard Business School; entre outros.

A lista fala por si mesma. O diretor conseguiu entrevistar pessoas de renome e importantes para a história recente da crise econômica. Mas várias outras pessoas ficaram de fora – representantes de alguns dos principais culpados listados pelo diretor, como políticos que fizeram as mudanças de legislação necessárias para que houvesse a possibilidade de uma crise financeira; representantes de bancos que criaram produtos questionáveis e incentivaram os seus investidores a aplicar suas economias neles; responsáveis por empresas de auditoria e agências de classificação de crédito americanas que deram notas de confiança irreais, assim como reguladores do governo que não fizeram bem o seu papel. Impossível não sentir falta desta gente falando – e lembrar do estilo escrachado de Michael Moore em fazer isso, ainda que, muitas vezes, sem o efeito desejado.

Algo positivo em Inside Job é o ritmo do filme. Dinâmico, com uma ótima trilha sonora, o filme vai da Islândia, passando pela apresentação dos principais entrevistados da produção, até as cenas dos noticiários de várias partes do mundo no fatídico dia 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimento Lehman Brothers quebrou e o Merrill Lynch foi posto à venda, em apenas 10 minutos. Palmas para a percepção de ritmo e de introdução do diretor, em um trabalho conjunto com os editores Chad Beck e Adam Bolt e a trilha sonora de Alex Heffes. Segundo a narrativa do ator Matt Damon, o resultado imediato da quebra do Lehman Brothers e o colapso da maior companhia de seguros do mundo, a AIG (American International Building) desencadeou a crise financeira global. Que, em outras palavras e de forma mais prática, resultou em uma recessão global “que custou ao mundo dezenas de trilhões de dólares”, deixando “30 milhões de pessoas desempregadas e dobrou a dívida nacional dos EUA”. Como resume Roubini, o custo prático pode significar 15 milhões de pessoas no mundo voltando (ou entrando pela primeira vez) para a linha abaixo da pobreza.

O diretor Ferguson defende – porque todo documentário é a defesa de uma ideia, de uma tese – que esta crise e o seu alto custo que ainda está sendo pago não foi acidental. No documentário, ele tenta explicá-la e, principalmente, encontrar alguns de seus culpados. Acho importante esse tipo de trabalho, mesmo quando ele se mostra parcial – não no sentido de defesa de tese, porque todo filme é assim, mas por não mostrar o quadro completo do problema, e sim apenas parte dele. Isso porque não é sempre que um diretor consegue fazer um trabalho lógico, didático e que tenha também a coragem de expor pessoas, empresas e instituições. Palmas para Ferguson. E também para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que conferiu um Oscar para este filme – colocando-o ainda mais em evidência.

Ferguson argumenta que a crise foi “causada por uma indústria fora de controle”. Ele se refere ao sistema financeiro. Na primeira parte do filme, ele mostra “como chegamos até aqui” e, depois, começa a apontar alguns dos responsáveis por todo esse problema. O bacana desta forma de narrar escolhida por Ferguson é que ela faz um rápido repasse histórico, mostrando como os Estados Unidos avançaram após a Grande Depressão. Apenas por isso, Inside Job é um filme importante e que poderá ser utilizado nas escolas, universidades e similares. Não como ponto final na discussão mas, provavelmente, como um elemento a mais para ela. Algo positivo em Inside Job é o espectador ter acesso a alguns dos melhores especialistas em sistemas financeiros e lógica de mercado do mundo. Além da rápida aula de história, podemos entender um pouco melhor como foram feitas as desregulamentações de mercado e de que forma surgiram os novos produtos oferecidos pelo sistema financeiro – a diferença deles com os anteriores.

Importante também a forma com que Ferguson demonstra as relações de poder e a “contaminação” de diferentes governos dos Estados Unidos por interesses de banqueiros e executivos do sistema financeiro. As “relações perigosas” são colocadas às claras. Com isso, o espectador passa a prestar mais atenção em informativos e estudos divulgados por determinados bancos e agências contratadas por eles, por conglomerados financeiros ou companhias de seguros. Uma mudança fundamental, segundo a tese de Ferguson, que permitiu a crise financeira e global foi a desregulamentação de derivativos e outras inovações financeiras a partir dos anos 2000. O diretor mostra como o sistema financeiro ficou mais “rentável, concentrado e poderoso” a partir dos anos 2001, e lista quem concentrava todo este poder: os bancos de investimento Goldman Sachs, Morgan Stanley, Lehman Brothers, Merrill Lynch e Bear Stearns; os conglomerados financeiros Citigroup e JP Morgan; as companhias de seguros AIG, MBIA e AMBAC; e as três agências de classificação de risco Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch.

O diretor explica como funciona a “cadeia alimentar da titularização, um novo sistema que ligava trilhões de dólares de hipotecas e outros empréstimos com investidores em todo o mundo”. Com exemplos simples, Ferguson mostra como o sistema financeiro mudou o seu sistema de atuar, tornando o capital muito mais inseguro do que em qualquer outra época histórica. Consequentemente, ele trata da bolha imobiliária nos Estados Unidos – mesma lógica vista na Espanha e em outras partes e que pode continuar acontecendo se não forem estabelecidas regras e limites muito claros. De fato, muita gente ganhou muito dinheiro com toda essa crise e caos, ao custo do emprego e das rendas de tantas e tantas outras pessoas ao redor do mundo – algumas co-responsáveis, por assim dizer, porque aplicaram os seus investimentos em opções de alto risco, mas outras que nunca tiveram nem a possibilidade de fazer isso porque nunca tiveram sobra de capital para tanto.

Muito interessante a forma com que Ferguson nos conta essa história, utilizando de recursos diversos, desde bancos de imagens – fotografias e vídeos – até gravações em áudio e a reprodução de documentos importantes. Boa parte das pessoas, empresas e instituições que ele não conseguiu entrevistar “aparecem” no filme por meio destes recursos. Na verdade, Inside Job é uma aula de como fazer um documentário com poucos recursos – e de que não conseguir todas as entrevistas que se gostaria não é uma justificativa para desistir de um projeto. E mesmo deixando parte dos “culpados” e da lógica econômica mundial de fora, ele faz um bom trabalho. Até porque poucos filmes, até agora, se dedicaram a mostrar as relações de interesse envolvendo o sistema financeiro e os políticos, por exemplo, e de como todo (ou quase todo) o sistema de decisão, que deveria ser democrático e pensar no interesse da maioria, está contaminado pelo interesse de alguns poucos. Eis um importante soco no estômago e que deve fazer as pessoas repensarem algumas lógicas e em quem confiar.

NOTA: 9,3.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Antes de filmar Inside Job, o diretor Charles Ferguson havia feito apenas um outro trabalho: No End in Sight, de 2007. Sua estréia na direção (a qual eu ainda não assisti) faz um exame crítico da administração Bush no que se refere à invasão do Iraque. Estampando a nota 8,3 no site IMDb, No End in Sight concorreu ao Oscar de 2008 – mas perdeu a estatueta para Taxi to the Dark Side. Na época, Ferguson não apenas recebeu ótimas notas e elogios, mas também conseguiu oito prêmios – incluindo um prêmio especial do júri do festival de Sundance. Uma bela estreia, pois.

O êxito de Inside Job foi diferente. Em sua trajetória, o filme conquistou menos prêmios que a produção anterior de Ferguson, “apenas” seis. Mas levou para casa, diferente do outro filme, o Oscar. E como o mundo inteiro olha para o Oscar, mais que para outras premiações… sem dúvida Inside Job levou vantagem. Além do Oscar, Inside Job ganhou os prêmios do Directors Guild of America (pelo trabalho como diretor de documentário), da Sociedade Nacional de Críticos de Cinema dos EUA, do Writers Guild of America (como melhor roteiro para documentário) e dos círculos de críticos de Nova York e Southeastern. Além destes prêmios, Inside Job concorreu a outros 11.

Francamente, e quem acompanha o blog sabe disso, neste último Oscar eu estava torcendo pelo documentário Exit Through the Gift Shop, dirigido por Banksy e Jaimie D’Cruz. Adorei o filme. E ainda que continue tendo uma “quedinha” maior por ele, por sua ousadia, inovação e humor, devo tirar o chapéu para Inside Job. Sem dúvida Ferguson faz um grande e importante trabalho. E como os dois filmes tratam de temas tão diferentes e de forma também diversa, fica difícil escolher entre um ou outro. Ainda assim, acho que pela importância da produção, Inside Job mereceu mais o Oscar do que Exit Through the Gift Shop. Pelo menos, com a estatueta, ele ganhou outra projeção – e provavelmente tenha chegado a muito mais pessoas do que se não tivesse ganho a estatueta.

Curioso que um filme tão detalhista tenha errado no início em dois momentos: na grafia dos nomes de Dominique Strauss-Kahn e Paul Volcker – que aparecem como “Dominque Straus-Kahn” e “Vocker”.

O mérito pelo roteiro competente de Inside Job é de Ferguson. Mas ele não fez o trabalho todo sozinho. Contou com a ajuda de Chad Beck e Adam Bolt. Além deles e dos outros profissionais citados, vale a pena comentar o trabalho competente dos diretores de fotografia Svetlana Cvetko e Kalyanne Mam.

Inside Job estreou em fevereiro de 2010 na Bélgica e, em maio, participou do Festival de Cannes. A produção passou ainda por outros nove festivais, incluindo os do Rio e de São Paulo. Nos Estados Unidos, a produção acumulou pouco mais de US$ 4,3 milhões nas bilheterias – o melhor resultado entre os documentários que concorreram ao Oscar deste ano. O melhor desempenho, atrás dele, foi de Exit Through the Gift Shop, que acumulou pouco menos de US$ 3,3 milhões nos Estados Unidos.

Os usuários do site IMDb deram a nota 8,2 para Inside Job. Os críticos que tem seus textos linkados no Rotten Tomatoes foram bem mais generosos: dedicaram 131 críticas positivas e apenas quatro negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 97% – e uma nota média de 8,2, esta sim, similar àquela do IMDb.

CONCLUSÃO: Eis um filme necessário. Inside Job explica alguns conceitos difíceis e importantes da economia. Apresenta nomes, de pessoas, empresas e instituições que participaram do surgimento da crise financeira e econômica global. Por tudo isso, ele tem méritos. Mas ao focar a atenção apenas nos bancos e no sistema financeiro, o documentário não explica todo o quadro. A responsabilidade dos especuladores, de empresas e de outros atores do sistema econômico, assim como dos políticos e gestores de outros países fica de fora do foco do diretor Charles Ferguson. No fim das contas e tornando tudo mais simples, o centro da crise está no excesso de dinheiro entregue para pessoas sem condições de gestioná-lo. O capital descolado do material e do trabalho ganhou nos especuladores – individuais e empresariais – o seu elemento bomba. E o maior problema é que a essência do problema não foi alterada. Continuamos seguindo a mesma lógica. A dúvida é até quando. Inside Job está aí para explicar parte da origem destes problemas. Mas outros documentários serão necessários para explicar o quadro todo.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

5 respostas em “Inside Job – Trabalho Interno”

Oi Maurilio!

Muito obrigada pelo incentivo.

Mas como você deve ter percebido, voltei, só não com toda aquela frequencia que eu gostaria… meu sonho de consumo é conseguir tempo para atualizar o blog pelo menos duas vezes todas as semanas. Mas ainda não estou conseguindo isso. Quem sabe um dia?

Obrigada pela tua visita e pelo teu comentário. E volte mais vezes!

Abraços e inté!

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Oi Vanessa!

Nossa, que legal te encontrar por aqui.
Fico feliz que tenhas encontrado o blog.

Achei muito bacana teres colocado aquele meu parecer no teu blog. Também fiz uma “volta no tempo” quando li o que colocaste ali.

E deu saudade também. Espero que estejas bem. Feliz e escrevendo bem por aí. Ou, pelo menos, dando asas para a tua imaginação.

Beijos grandes, com saudades!
Ah, e volte por aqui mais vezes, ok? Inclusive para comentares filmes dos quais tenhas gostado.

Beijos mil e inté!

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