Categorias
Cinema Cinema norte-americano Crítica de filme Filme premiado Globo de Ouro 2023 Movie Oscar 2023 Votações no blog

Women Talking – Entre Mulheres


Mulheres que nunca tiveram voz, decidem reunir-se e falar o que sentem e o que pensam. O que elas desejam? Nada muito complicado, mas o que elas nunca tiveram. Women Talking é um filme potente, delicado e sensível, tudo ao mesmo tempo. Certamente ele vai fazer muito mais sentido para mulheres atentas ao nosso tempo – e ao que veio antes – e sensíveis do que para a maioria dos homens. Mas acredito sim que teremos espectadores que também se deixarão envolver por essa história. Basta ser humanista para isso. Até o momento, esse filme está entre os dois melhores entre os indicados na principal categoria do Oscar.

A HISTÓRIA

Começa com alguém comentando que essa história termina antes que a pessoa que a está ouvindo nascera. Deitada sobre uma cama, vemos Ona (Rooney Mara), que, ao acordar, percebe que tem sangue entre as pernas. Conseguimos ver que ela tem hematomas nas pernas. Ona chama a mãe, Agata (Judith Ivey), e comenta que “aconteceu novamente”. Agata abraça Ona. A narradora comenta que, quando elas acordavam, sentiam “mãos que não estavam mais lá”. Os anciãos diziam que eram fantasmas ou Satanás. Corta. Vemos uma sala cheia de rapazes ajoelhados e de cabeça baixa. A narradora complementa que outras justificativas dos anciãos é que elas poderiam estar mentindo “para chamar a atenção” ou que aquelas cenas seriam apenas a imaginação delas. Aquela situação durou anos, até que algo aconteceu para mudar a visão das mulheres do local.

VOLTANDO À CRÍTICA

(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Women Talking): Minha gente, que filme potente! Dirigido com primor por Sarah Polley, uma das minhas diretoras favoritas, e com um roteiro escrito com zelo, com atenção em cada palavra, este filme surpreende após diversas produções medianas que eu vi por causa das indicações ao Oscar. Chega a ser um abismo, na comparação com o filme anterior que eu assisti – Triangle of Sadness (comentado aqui).

Como sempre, fico feliz de não ter lido nada a respeito de Women Talking antes de ter assistido a essa produção. Esta é a melhor forma de assistir a um filme, ao meu ver, porque daí somos surpreendidos pelos fatos que os realizadores nos apresentam. Depois vou comentar sobre um aspecto da produção que deixa a história ainda mais forte quando não sabemos sobre aquela informação com antecedência.

Curioso que calhou de eu publicar o texto sobre Women Talking justamente hoje, Dia Internacional da Mulher. Porque este filme é especialmente tocante e potente para as mulheres. Por razões óbvias. O que temos em cena nesta produção com direção e roteiro de Sarah Polley?

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Women Talking trata sobre uma comunidade isolada na qual mulheres, não importa a idade que elas tenham, começando com as crianças, seguindo com as adolescentes, chegando até as mulheres adultas e as anciãs, são violentadas repetidas vezes. Quem é responsável por isso? Aparentemente, a maior parte dos homens que fazem parte desta mesma comunidade.

A potência da parte inicial do filme está na forma como Sarah Polley introduz essa história. Temos logo de cara a perspectiva de que a narradora está contando aquela história para uma geração futura – ou seja, temos a esperança de que o que veremos em cena não terminou em uma grande tragédia. Isso é um alento, um respiro e uma esperança importante para o que veremos na sequência. Uma mulher em sua cama, acordando de um pesadelo real. Ela foi violentada enquanto dormia – possivelmente após ser dopada, como acontecia com frequência.

Ona não era um caso isolado. Em seguida, vemos uma menina andando pelos campos, e logo é sugerido que isso acontecia com todas as mulheres, inclusive aquela menina e outras que iriam aparecer na sequência. Quando a narradora comenta que os “anciãos” usavam de todas as desculpas possíveis para aqueles abusos, menos admitirem que algo de errado estava acontecendo, percebemos que o problema era sistêmico.

Em seguida, e durante todo o filme, somos apresentados aos sentimentos daquelas mulheres, jovens e meninas. Como elas se sentiam após serem abusadas? Como se sentiam as mulheres que engravidavam desses abusos? Na sequência, a narradora comenta que costumava questionar-se como ela seria se não tivesse sido abusada. Ela imaginava isso e sentia falta de quem ela poderia ter sido sem aquele grau de violência. Mas ela afirma que agora ela não sente mais isso, porque chegou o dia do juízo final e uma chamada para a oração. Que forte, não?

Pouco a pouco vamos mergulhando na realidade daquela comunidade. Entendemos que aquelas mulheres, sistematicamente abusadas e sempre silenciadas, impedidas de estudar, forjadas para serem obedientes, submissas e para não pensarem ou falarem, fazem parte de uma comunidade extremamente religiosa. E aí surge aquela primeira surpresa importante para quem não procurou saber sobre o filme com antecedência.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Inicialmente, pelo estilo das roupas das mulheres, sua forma de falar e até a narrativa que elas fazem da comunidade em que vivem, poderíamos pensar, tranquilamente, que aquela história estaria ambientada no século XIX, correto? Talvez algo em torno de 1850 ou 1870… então qual é a nossa surpresa – e um tanto chocante pensar nisso – quando o “homem do Censo” nos informa que o tempo da narrativa é o ano de 2010? Isso muda bastante nossa perspectiva, ajuda a nos deixar ainda mais perplexos e dá força para a narrativa.

Sim, em pleno século XXI podemos ter uma realidade como aquela acontecendo em alguma parte do mundo. Não é raro sabermos de comunidades “alternativas” que foram criadas aqui e ali. Algumas procuram ter um contato mais próximo com a natureza, outras buscam ter relações mais igualitárias, enquanto outras, como a que vemos em Women Talking, parece retornarem no tempo, para o passado, onde a religião era o centro do universo e da vida das pessoas e tudo era justificado ou explicado por causa de uma determinada crença.

Acho isso assustador. Com todo o respeito a quem pense diferente, claro. Mas acho assustador quando um grupo procura ignorar toda a ciência, todos os avanços que a educação nos trouxe, assim como avanços na busca por sociedades mais igualitárias, para balizar toda sua organização interna e toda a conduta das pessoas apenas na interpretação de uma religião – interpretação essa que, claro, muda conforme os interesses de quem tem poder. No caso, quase em 100% das vezes, homens brancos.

Conforme o roteiro de Sarah Polley, que se baseou no livro de Miriam Toews, vai se desenvolvendo, nos aprofundamos não apenas na realidade daquelas mulheres e na lógica extremamente desigual de sua comunidade, como entramos em alguns temas super relevantes e atuais.

Hoje, infelizmente, temos diversos movimentos extremistas baseados em religiões e/ou crenças que parece quererem fazer a Humanidade retroceder no tempo. Women Talking nos faz pensar o que está por trás dessa lógica e destes movimentos? Certamente, em grande medida, esses movimentos querem frear os avanços na direção de uma civilização mais humanista, que busca realmente a “liberdade, igualdade, fraternidade” entre todos. O sonho de quem sempre teve o poder é não perder esse poder, claro.

A sociologia e a antropologia estudam e demonstram como todos os avanços que fazemos são sucedidos por tentativas de retrocessos. A velha questão do movimento de empurrar a civilização para a frente ser sucedido do movimento contrário. A busca pelo retrocesso é um movimento esperado do “status quo”, de quem sempre teve o poder e não quer perder o posto de “liderança” da sociedade. As sociedades patriarcais, aparentemente predominantes no mundo, tendem a resistir a mudar.

Para além disso, da disputa pura e simples do poder, que homens não querem dividir com as mulheres – especialmente na história de Women Talking -, temos nesta produção uma outra discussão importante. Querendo ou não, o filme aborda bastante a questão da agressividade, das ações destrutivas, de controle e de subjugação das mulheres por parte dos homens. Através do abuso sexual, do estupro, os homens daquela comunidade estão permanentemente dizimando a autoestima das mulheres, jovens e meninas.

Pior do que aqueles atos abjetos em si é pensar que tudo aquilo era “justificado” por líderes que procuraram desacreditar as mulheres. A violência, assim, não terminava no ato violento em si, mas continuava depois, de forma permanente e institucionalizada. Existe cenário pior?

Enfim, não tem como assistir Women Talking, especialmente sendo mulher, e não ficar indignada e muito mexida com toda essa história. Depois daquele começo potente, que comentei acima, temos uma mudança importante da narrativa. Pela primeira vez as mulheres da comunidade, de todas as idades, que não sabiam ler ou escrever, puderam votar. Elas tinham três opções: não fazer nada, ficar na comunidade e lutar contra os homens abusadores ou sair dali.

Gente, que incríveis aquelas cenas da votação! E do veio depois. Empoderamento puro e em estado bruto. Como as opções “ficar na comunidade e lutar” e “sair dali” tiveram o mesmo número de votos, foi decidido que as mulheres de três famílias iriam se reunir para decidir o que todas iriam fazer. Este é o ponto central da produção. A partir dali, com algumas interrupções pontuais aqui e ali para nos aprofundarmos um pouco em algumas histórias particulares ou para vermos a vida na comunidade, especialmente envolvendo as crianças, passamos a acompanhar a discussão das ideias daquelas mulheres.

A partir desse ponto, o roteiro de Sarah Polley perde um pouco de dinamismo, com Women Talking mergulhando, basicamente, no confronto de visões de mundo diferentes, mas a diretora e roteirista sabe segurar nossa atenção com um texto cuidadoso, delicado e potente, ao mesmo tempo que sua câmera está sempre atenta a cada detalhe das interpretações em cena e a diversos detalhes interessantes daquele contexto – como os desenhos de Neitje (Liv McNeil).

Aquele grupo de mulheres, com visões bem diferentes sobre o que elas deveriam fazer, vão debatendo suas ideias até chegarem a um consenso. E isso não é nada simples. Afinal, não é fácil deixar o local em que se vive ou ter que enfrentar homens sem ter a segurança de que aquela realidade irá mudar. Não fazer nada parece que não era uma opção – ao menos, nunca declara, apesar de algumas vezes quase sugerida por Mariche (Jessie Buckley).

Aos poucos, aquelas mulheres, que nunca realmente tiveram espaço para falar sobre a comunidade que elas desejavam, começam a ponderar os prós e contras das duas alternativas mais votadas pelas mulheres da comunidade. Quando fazem isso, elas debatem seus sentimentos, visões de mundo e diagnósticos do que estava acontecendo. Conversando, elas conseguem se entender, se perdoar e ver que o quadro é mais complexo.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Elas descobrem, de maneira muito interessante, como elas devem enfrentar não apenas os estupros e a violência que está relacionada com eles, mas que elas devem enfrentar toda a lógica violenta e misógina que sustenta aquela comunidade. Assim, não bastaria enfrentar os homens culpados, mas impedir que os meninos e os jovens, filhos daquelas mulheres que eram abusadas, percorressem o mesmo caminho. E, aparentemente, eles iriam percorrer se seguissem naquela lógica sistêmica.

Gente, não sei vocês, mas as conclusões que elas chegam dói na gente. Sim, enquanto não falarmos sobre esta lógica da violência que se espalha pelas nossas sociedades, nunca vamos conseguir resolver realmente nada. A questão da fé, para além do debate sobre religião, também é um ponto importante nas discussões daquelas mulheres.

(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Por isso o resumo que Mariche faz de tudo que aquelas mulheres estão buscando, no final das contas, é perfeito. A tomada de consciência dela é um dos maiores exemplos de empoderamento feminino que eu já vi em um filme. Mariche, inicialmente a mais “resistente” àquele debate, conclui que as mulheres entenderam que tem direito a que suas filhas estejam seguras, a seguirem com sua fé e a pensar. Tudo que elas não teriam seguindo naquele local.

O primeiro e o terceiro ponto que ela cita são meio óbvios. Mas e o segundo? Inicialmente, mulheres como Salome (Claire Foy) defendiam a opção de “ficar e lutar”. Mas o que isso significaria, na prática? Talvez, e possivelmente, confronto que poderia terminar em morte. Ou seja, as mulheres iriam contra a própria fé, que prega claramente “não matarás”. Elas não queriam tornar-se assassinas, mas também não podiam permitir que os crimes continuassem.

Então elas tomam a decisão mais que corajosa de buscar formar uma comunidade mais justa, igualitária e pacífica em outro lugar. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Para isso, elas teriam que fazer algo complicado, que era deixar os homens adultos e os jovens com mais de 15 anos para trás – incluindo seus filhos, irmãos, primos e afins. Para elas, rapazes com 15 anos ou mais já estavam “contaminados” o suficiente com aquela lógica perversa dos homens adultos misóginos da comunidade.

O grupo chega à conclusão de que elas poderiam transformar a lógica vigente até então ao educarem os meninos e os jovens com menos de 15 anos de outra forma. Tenho certeza que esta questão da idade de quem seria “deixado para trás” pode render horas de discussão em várias partes, mas não deixa de fazer sentido – apesar de quase sentirmos na pele a dor daquelas mulheres em deixar pessoas para trás, talvez algumas delas “ainda inocentes”.

Enfim, que filme duro e inspirador! Impossível, da forma como Women Talking foi construído, este filme não emocionar, não fazer refletir ou levantar diversas discussões. Que filme importante por tudo isso! Também achei fundamental a produção ser ambientada da forma que é e no espaço temporal em que a história se passa. Tudo isso nos faz refletir ainda mais sobre como nosso comportamento pode ser moldado por regras, pelo entorno, e como podemos viver “eras passadas” na atualidade.

E isso vale não apenas para os homens, criados para serem violentos e para “subjugar” as mulheres, porque elas são o “sexo frágil” e foram feitas para isso, segundo algumas interpretações equivocadas da Bíblia, mas também para as mulheres. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Como bem afirma Greta (Sheila McCarthy) para a filha, Mariche, ela ensinou ela a perdoar sempre, inclusive o marido violento, estuprador e abusador. Afinal, segundo a “religião” delas, que até então elas confundiam com fé, isso é o que elas deveriam fazer, perdoar sempre.

Mas há crimes, ações e gestos que não podem ser perdoados. Ou até podem ser perdoados, com o devido distanciamento, mas que nunca devem ser aceitos. Esse é um dos grandes aprendizados deste filme. Ele trata, com bastante profundidade, sobre as escolhas que fazemos com base nas nossas crenças e no que entendemos como nossos direitos. Uma questão não deveria anular a outra. E quando isso acontece, algo está errado. Questões que podem ser básicas muitas vezes podem não ser tratadas desta forma conforme são manipulados textos “sagrados”.

A questão que devemos sempre nos perguntar, especialmente quando estamos falando sobre esse tipo de interpretação, é a seguinte: o que está por trás disso? Que tipo de interesses estão sendo preservados ou defendidos? Estamos, com essas interpretações, sendo mais amorosos, inclusivos, compreensivos, dando espaço para todos se desenvolverem de forma igualitária ou estamos excluindo, corrompendo, disseminando a separação e o ódio? Todos estão sendo defendidos com determinada interpretação ou apenas uma parte da coletividade?

Enfim, os debates que Women Talking pode levantar são grandes. Mas, mais do que nos fazer pensar – o que o filme faz, de fato -, Women Talking nos faz sentir. Quando o cinema consegue o casamento perfeito entre pensar e sentir, mexendo com a gente para sairmos da posição de paralisia que pode ser habitual, temos um resultado diferenciado. Esse é o caso de Women Talking, um filme envolvente, emotivo no ponto certo, com um roteiro e uma direção primorosos e um elenco de tirar o chapéu. Desta safra do Oscar, um dos dois filmes imperdíveis e altamente recomendados.

Fiquei com a dúvida sincera sobre qual nota eu daria para esta produção. Como eu disse, a meu ver, ela chega perto da perfeição. Mas, tenho dois pontos que eu gostaria de comentar e que justificam a nota abaixo. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Primeiro, que acho que apesar do roteiro ser um ponto forte do filme, ele sofre com uma certa previsibilidade no final – a posição radical de algumas personagens, especialmente Mariche e Salome, torna um tanto previsível a “virada” de chave que elas passam após os debates e reflexões. Depois, acho pouco provável que nenhum homem daquela comunidade, por mais bêbado ou por mais que estivesse trabalhando fora no momento da “fuga massiva” das mulheres, aparecesse para contestar aquela situação. Claro que para efeitos dramáticos da produção, para termos a catarse da vitória feminina no final, aquela fuga teria que ocorrer daquela forma. Mas achei pouco plausível. São detalhes em uma produção tão bem acabada, mas detalhes também contam para o resultado final de um filme.

NOTA

9,8.

OBS DE PÉ DE PÁGINA

Eis um filme com diversas qualidades. Entre as principais, para mim, estão o roteiro e a direção de Sarah Polley e o trabalho do elenco. Achei todas as atrizes maravilhosas, com alguns destaques em especial. Falarei sobre isso logo mais. Agora, vale falar sobre Sarah Polley.

Quem me acompanha aqui no blog há mais tempo sabe que eu já elogiei muito essa atriz, diretora e roteirista. Gosto da forma dela de conduzir as histórias e do olhar diferenciado que ela tem para temas sensíveis. Sarah Polley estreou na direção em 1999 com o curta Don’t Think Twice. Depois de dirigir mais três curtas e uma minissérie para televisão, ela estrou na direção de longas com Away from Her, filme de 2006 que eu comentei por aqui. Passaram-se cinco anos até que ela voltou na direção de um longa com Take This Waltz (com crítica neste link). No ano seguinte, em 2012, ela dirigiu Stories We Tell (comentado por aqui). Em 2020, ela dirigiu a série para TV Hey Lady! Agora, com Women Talking, ela volta para a direção de longas. Ou seja, a filmografia dela como diretora não é longa, mas é sempre marcante, com filmes diferenciados. Algo raro.

O roteiro de Women Talking é preciso, dando espaço tanto para as mulheres da produção emitirem suas opiniões e construírem seu próprio caminho de libertação, quanto para o desenvolvimento de algumas relações e interações entre as pessoas importantes para a história fora do espaço daquele debate sobre próximos passos para o coletivo feminino. Importante termos alguns “respiros” nos debates, tanto para que o filme não ficasse muito cansativo, focado apenas na argumentação das mulheres, quanto para ampliarmos nossa visão e vermos que havia espaço para outros tipos de interação – especialmente envolvendo as crianças. Muito inteligente a forma como Sarah Polley constrói esses cenários e vai costurando a narrativa com esses “respiros” e ampliações de horizonte.

A direção de Sarah Polley é outro diferencial. Cada cena parece ter sido cuidadosamente pensada. A câmera está sempre próxima das atrizes e dos atores, valorizando o trabalho que eles entregam a cada cena. Além disso, a diretora está sempre atenta a detalhes que ajudam na narrativa, tornando nosso campo de visão mais restrito ou mais amplo conforme o sentimento que ela quer nos despertar a cada momento do filme.

Outra qualidade marcante de Women Talking é o elenco. Que grupo de atrizes, minha gente! Claro que algumas personagens tem mais destaque que outras – algo inevitável, especialmente com várias atrizes em cena.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Neste sentido, impossível não destacar o trabalho perfeito de Rooney Mara como Ona, grávida após um dos estupros que sofreu, uma das mulheres mais curiosas e com pensamento lógico do grupo, ela procura organizar sempre o debate e trazer contrapontos para a discussão; Claire Foy como Salome, mãe de uma menina de quatro anos que foi estuprada e que, inicialmente, deseja fazer a justiça com as próprias mãos, apesar de temer ir contra a fé ao pensar em tornar-se uma assassina; Jessie Buckley como Mariche, mãe de família que apanha do marido violento, que não consegue proteger os filhos dele e que, inicialmente, parece ser a que mais resiste às ideias que estão em debate; Judith Ivey como Agata, mãe de Ona e uma das vozes mais sábias e equilibradas em cenas; e Sheila McCarthy como Greta, mãe de Mariche e uma das mulheres que desperta a consciência a partir do debate entre as mulheres naquele rancho.

Esse grupo de atrizes é o que, a meu ver, tem mais destaque na narrativa. Mais uma vez, Rooney Mara demonstra como ela é uma das melhores intérpretes de sua geração. Acho impressionante como ela é magnética, atrai nosso olhar e nos deixa encantados com cada expressão e mudança sutil no tom de sua interpretação. Outros destaques pelas entregas viscerais nesta produção são de Claire Foy e Jessie Buckley, claramente as personagens com maiores “embates” na história.

Além do grupo que eu destaquei anteriormente, há outras atrizes que fazem um belo trabalho e que tem relevância nesta produção. Vale citar, neste sentido, o ótimo trabalho de Kate Hallett como Autje e de Liv McNeill como Neitje, a dupla de amigas inseparáveis e que acompanha todas as discussões com desdém e, depois, crescente interesse; e Michelle McLeod como Mejal, uma das vítimas que mais apresenta traumas dos abusos sofridos mas que ajuda as outras a formular suas questões.

Para além destas mulheres, que são responsáveis pelo núcleo central da produção, vale citar o trabalho de Ben Whishaw como August, um homem sensível, que estudou fora, filho de uma mulher que foi banida da comunidade e que voltou para ser professor. Ele aparece no filme – único homem com destaque na produção – em um papel “secundário”, como pessoa responsável por registrar em ata o que as mulheres vão deliberar. Bastante significativo esse papel, claro. Além dele, vale destacar o belo trabalho de August Winter como Melvin. O ator transgênero interpreta um personagem trans, muito sensível e com uma postura importante – ele só fala com as crianças, mantendo-se mudo com os adultos, até que Agata faz um gesto de aceitação importante. Mais um acerto do roteiro.

Além destes nomes, temos alguns atores e atrizes em papéis secundários mas que merecem ser mencionados – seja pela importância que eles tem em cena, mesmo que de forma breve, seja por serem nomes de peso. Vale citar, neste sentido, Emily Mitchell como Miep, a filha doente de Salome; Frances McDormand como Janz, matriarca da família composta pela filha Anna, interpretada por Kira Guloien, e pela neta Helena, interpretada por Shayla Brown, e que acaba abandonando as discussões que envolvem “ficar e lutar” ou “ir embora”; Nathaniel McParland como Aaron, filho com predisposição “rebelde” de Salome; Will Bowes como o “homem do Censo”; e Eli Ham como Klaas, marido de Mariche.

Alguns podem se surpreender como uma atriz do gabarito de Frances McDormand pode ter topado um papel tão secundário em Women Talking. Mas a verdade é que ele acreditou demais no projeto de Sarah Polley, ao ponto de ser uma das produtoras do filme, que tem como um de seus produtores executivos o ator Brad Pitt.

Da parte técnica do filme, temos alguns aspectos que merecem destaque. Para começar, é de tirar o chapéu a direção de fotografia de Luc Montpellier. Depois, vale citar a ótima edição de Christopher Donaldson e de Roslyn Kalloo; assim como a interessante e bem pontual trilha sonora de Hildur Guðnadóttir. Outros aspectos que merecem ser destacados: os figurinos de Quita Alfred; o design de produção de Peter Cosco; a direção de arte de Andrea Kristof e a decoração de set de Friday Myers. Todos esses aspectos nos ajudam a “mergulhar” naquele cenário e a vivenciar essa história. Também vale citar o trabalho competente do grupo de oito profissionais envolvidos com o Departamento de Maquiagem.

Women Talking estreou em setembro de 2022 no Festival de Cinema de Telluride. Até março de 2023, o filme participaria, ainda, de outros 19 festivais em diversos países. Entre outros eventos, Women Talking participou dos festivais de Toronto, Nova York, Viena e Gotemburgo.

Até o momento, Women Talking ganhou 54 prêmios e foi indicado a outros 155 – incluindo duas indicações ao Oscar. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o de Melhor Roteiro Adaptado conferido pelo Critics Choice Awards; para o de Melhor Elenco do National Board of Review e para o de Melhor Roteiro Adaptado conferido pelo Writers Guild of America.

Agora, vale citar algumas curiosidades sobre esta produção. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Women Talking é baseado no romance homônimo de Miriam Toews lançado em 2018. A autora foi inspirada por uma história real envolvendo estupros em série feitos com perversidade em uma comunidade “menonita insular e ultraconservadora” na Bolívia. Entre 2005 e 2009, nove homens que viviam na remota colônia Manitoba usaram tranquilizantes normalmente utilizados para o gado para drogar vítimas com idade entre três e sessenta anos de idade. Elas eram estupradas de forma violenta à noite. Quando as meninas, jovens e mulheres acordavam machucadas e cobertas de sangue, os homens da colônia descartavam os relatos dela afirmando que eram delírios, mesmo quando elas engravidavam após as agressões. Outra alegação dos homens é que as mulheres estavam sendo “castigadas” por Deus ou por demônios por causa de seus pecados. Segundo um artigo da BBC, quando os homens foram finalmente capturados, eles foram presos pelas autoridades bolivianas. Um fugiu da Justiça, mas os outros oito foram julgados e condenados. Sete foram condenados a 25 anos de prisão pelos estupros repetidos e múltiplos, e um foi condenado por fornecer a droga que propiciou os crimes. Depois, esse oitavo foi solto. Um artigo da Vice, de 2013, revelou que os crimes não pararam com a prisão desses homens, e que houve casos de estupro de alguns meninos e homens da colônia.

Honestamente, até ler a nota da produção acima, eu não tinha ideia do que era uma “comunidade menonita”. Fui pesquisar um pouco a respeito, e descobri alguns sites que trazem um pouco da história da Igreja Menonita no mundo e no Brasil. Recomendo, para quem tiver interesse em saber mais sobre eles, este conteúdo da Iemav e este outro material da TV Brasil.

Sobre a história real que inspirou o livro da Miriam Toews, achei esse conteúdo da BBC, assinada por Linda Pressly, bastante elucidativa. Ela traz um dado impressionante: que 151 mulheres e meninas teriam sido estupradas por aquele grupo de homens que, depois, foi defendido por lideranças daquela comunidade.

Ainda segundo notas de produção do filme, ainda que muitas comunidades menonitas sejam menos restritivas, a comunidade de Manitoba era ultraconservadora. Eles não permitiam eletricidade, telefones ou automóveis na comunidade. Como vemos no filme, as mulheres da comunidade boliviana não podiam aprender a ler.

A diretora Sarah Polley explicou que eles utilizaram diferentes níveis de saturação de cores no filme para criar uma sensação de “um mundo que havia desaparecido no passado”. Assim, temos a impressão, em alguns momentos, que estamos assistindo a um filme preto e branco, mas ele não foi feito desta forma, e sim com saturações próximas disso.

Durante as filmagens de Women Talking, o elenco foi orientado a não se maquiar, no caso das mulheres, ou não fazer a barba, no caso dos homens, até o final das rodagens.

As notas de produção me ajudaram a tirar uma dúvida sobre o filme. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Eu tive a impressão que a narradora da produção teria sido a personagem Autje, interpretada por Kate Hallett. Os produtores confirmaram essa informação. Sim, nossa narradora é Autje, que explica a história para uma criança da nova comunidade no futuro. Mas no livro de Miriam Toews, a história é narrada pelo personagem August Wilson. Sobre a mudança, a roteirista e diretora Sarah Polley disse que o filme foi escrito e rodado com a narração de August, mas que durante a montagem do filme, ficou claro que a história precisava ser contada por uma das mulheres que foi estuprada para que houvesse uma ligação mais direta entre o público e o filme.

A escolha da música Daydream Believer para tocar durante a passagem do recenseador pela comunidade não foi aleatória. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). A música faz referência a uma mulher “sonolenta” que está emergindo de um devaneio. O filme conta a história de mulheres e meninas que foram atacadas durante o sono, após terem sido drogadas, e que, agora, estão saindo de um pesadelo.

A diretora Sarah Polley disse que foi muito inspirada no trabalho do fotógrafo canadense Larry Towell para fazer este filme. Ele fotografou a vida em uma colônia menonita no México nos anos 1990. Duas fotos dele foram recriadas em dois momentos diferentes do filme – em uma cena em que algumas mulheres estão caminhando quando uma nuvem de poeira aparece em cena e em outro momento em que uma garota aparece dormindo em uma carroça.

Para quem gosta de saber em que locais os filmes são rodados, Women Talking foi rodado nas cidades de Toronto e Pickering, ambas no Canadá.

Women Talking é uma produção 100% dos Estados Unidos, por isso o filme passa a integrar a lista de produções que atendem a uma votação feita há tempos aqui no blog.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para esta produção, enquanto que os críticos que tem seus textos linkados no site Rotten Tomatoes dedicaram 250 críticas positivas e 26 críticas negativas para Women Talking, o que rende para o filme o nível de aprovação de 91% e a nota média 8. No site Metacritic o filme apresenta um “metascore” de 79, fruto de 37 críticas positivas, nove medianas e uma negativa.

Segundo o site Box Office Mojo, Women Talking teria faturado pouco mais de US$ 6,8 milhões nos mercados em que o filme estreou – sendo US$ 5,1 milhões apenas nas bilheterias dos Estados Unidos.

CONCLUSÃO

Com um roteiro de tirar o chapéu e um elenco de atrizes impecável, Women Talking nos envolve do primeiro até o último minuto. Verdade que o filme começa com uma potência que não se mantém até o final, mas a força do início dá lugar a diversas reflexões e a uma crescente emoção. A tomada de consciência simbolizada por uma personagem resume toda a história, assim como a força daquelas mulheres que decidem mudar suas vidas e das próximas gerações. Uma história inspiradora, marcante, que está entre as melhores pedidas desta última temporada. Particularmente para as mulheres – e para os homens que desejam evoluir -, é um filme imperdível.

PALPITES PARA O OSCAR 2023

Women Talking foi indicado em duas categorias do Oscar: Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado. Francamente, acho que o filme deveria ter recebido outras indicações. Pelo menos a de Melhor Direção para Sarah Polley e, talvez, as indicações de Melhor Fotografia, Melhor Trilha Sonora e alguma indicação de Melhor Atriz Coadjuvante.

Não faltariam nomes para uma indicação de Melhor Atriz Coadjuvante. Como Women Talking é uma produção com diversas atrizes com momento de destaque, talvez a dificuldade seria escolher apenas um nome. Agora, sem dúvidas, entre o trabalho de Sarah Polley na direção e o de Ruben Östlund com seu Triangle of Sadness (com crítica neste link), mil vezes a delicadeza de Sarah Polley. Mas, infelizmente, o Oscar tem o hábito equivocado de quase sempre deixar diretoras de fora das indicações…

Então voltemos para as duas categorias em que o filme concorre neste ano. Infelizmente Women Talking não tem chances como Melhor Filme. Temos que ser realistas. Como comentei anteriormente, para o meu gosto, esse filme, juntamente com The Banshees of Inisherin (produção comentada por aqui), são os melhores filmes na disputa este ano. Mas, infelizmente, tudo leva a crer que quem levará a estatueta dourada de Melhor Filme será mesmo o super indicado Everything Everywhere All at Once.

Bem, se Women Talking não tem chances na categoria Melhor Filme, isso muda de figura quando falamos da categoria Melhor Roteiro Adaptado. Segundo as bolsas de apostas para o Oscar, Women Talking é o favorito nessa disputa – em segundo lugar, mas um bocado atrás, aparece Im Westen Nichts Neues (com crítica neste link). Sendo franca, os dois filmes mandam muito bem no quesito roteiro. São ótimas adaptações. Mas sim, ainda acho que Women Talking leva vantagem sobre o filme alemão.

Assim, se as previsões se confirmarem, Women Talking conseguirá uma das duas estatuetas que a produção está disputando. Nada mal. Ainda que, como eu disse, ele merecia ter sido mais indicado ao Oscar deste ano.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 20 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing e, atualmente, atuo como professora do curso de Jornalismo da FURB (Universidade Regional de Blumenau).

Deixe uma resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.