Toda criança que enfrenta uma doença grave é uma heroína. Sob qualquer ótica que se olhe, não é nada simples observar uma criança que tem que passar por um longo tratamento, como o para combate a um câncer. Olhar para esta situação com lirismo, criatividade e colocando a criança como protagonista de toda a ação é o que torna este Phantom Boy diferente. Um filme realmente muito bonito, com uma história que não cai no sentimentalismo mas que trata toda a situação da doença e do tratamento com respeito e com um olhar generoso. Belo e interessante.
A HISTÓRIA: Um homem dá com o pé na porta. Ele invade o prédio e corre diversos lances de escada até chegar no andar em que está o bandido. O inspetor avança com atenção e confronta o vilão, mas o Exterminador se joga do prédio em fuga. Lily (voz de Rachel Salvatierra) interrompe aquela queda e pega o bandido pela capa. Ela pergunta para o irmão, Léo (voz de Gaspard Gagnol), o que significa o nome de Exterminador. O irmão explica que o nome significa que ele não é bom, que ele é o vilão.
Na sequência, Lily pergunta para o irmão se ele realmente vai para o hospital no dia seguinte. Ele diz que sim, que precisa ir, e fala que estar doente não é divertido, mas que ele tem um segredo. Leo comenta que algo estranho aconteceu depois que ele foi diagnosticado, mas pede para a irmã não contar o que ele vai falar para ninguém. Esse segredo é o que fará ele ajudar um policial de verdade a resolver um crime.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Phantom Boy): O cinema francês é especial. Humano, sensível, atento a cada detalhe do comportamento humano e, consequentemente, social. E mesmo quando estamos falando de um filme de animação, isso não é diferente. Como podemos ver nesta produção dos diretores Jean-Loup Felicioli e Alain Gagnol.
Esta produção, que pode ser vista tanto por crianças, jovens como por adultos, tem a fantasia que se espera de um filme de animação mas sem esquecer da realidade. Muito pelo contrário. Phantom Boy mergulha em uma série de fatos bastante duros da realidade, como pode ser a violência de crimes variados – de assalto até ataques terroristas – e a doença de uma criança, mas sem que estes temas todos se tornem pesados demais.
O roteiro de Alain Gagnol é muito sensível e envolvente. O filme trata de questões importantes, dando espaço para as crianças em cena se expressarem, mas sem que os temas que fazem parte da realidade mostrada – muitos deles presentes no nosso cotidiano – se tornem chatos ou parte de um “discurso” pesado. Não. Gagnol e Felicioli acertam em suas escolhas ao equilibrar a realidade com a fantasia e ao apresentar um enredo policial com requintes de aventura e de humor.
Todos em cena falam francês, mas a história se passa em Nova York. Uma cidade perfeita para uma história policial em que um bandido maluco quer se vingar de todos ao mesmo tempo em que quer contar a sua história triste – ele é caracterizado por um “rosto quebrado” (a voz dele é feita pelo ator Jean-Pierre Marielle). Este bandido, como manda o figurino de uma produção policial, conta com alguns comparsas: dois deles, também criminosos, vivem em suas desventuras com outro aliado do terrorista, um cachorro mal humorado.
Para combater o crime, claro, precisamos sempre de um mocinho. Este papel é desempenhado pelo policial Alex Tannet (com voz de Edouard Baer), um sujeito competente mas um tanto atrapalhado que é punido pelo chefe de polícia, o capitão Simon (com voz de Bill Lobley) e que, desta forma, acaba parando nas docas. É lá que ele enfrenta, sem querer, o bandido que vai colocar a cidade em colapso e sob ameaça. Antes de ser atacado pelo “homem com rosto quebrado”, Tannet consegue chamar reforços e, por causa disso, ele para no hospital ao invés de acabar no cemitério.
Depois de ser socorrido, ele recebe a visita da amiga jornalista Mary (voz de Audrey Tautou), que se considera uma “parceira” de aventuras do policial. Eles se conheceram em uma situação anterior, quando ele salvou o dia em um supermercado e, desde então, se tornaram próximos. Enquanto Mary chora pelo que aconteceu com Tannet, ele fala com ela sem ser visto, e é neste momento que ele conhece Léo.
Os dois estão no corredor do hospital em suas respectivas “projeções fora do corpo”. Para Tannet aquilo é novo, mas Léo já sabe como lidar com este seu “super poder” e como andar pelo hospital e para fora dele de forma consciente. Eis outro aspecto muito interessante de Phantom Boy: mesmo a parte da fantasia do filme tem um pezinho na realidade. Existem muitos textos e estudos sobre projeções/experiências fora do corpo. Vale dar uma olhada nesta matéria da Superinteressante e neste outro texto do Gizmodo.
Claro, existe muita controvérsia ainda sobre a capacidade de uma pessoa de se projetar para fora do corpo de forma consciente, como os textos sitados sinalizam. Mas Phantom Boy explora essa ideia e este “superpoder” de um menino que está passando por uma situação muito difícil, a de ficar em um hospital por um longo período de tempo lutando contra uma doença – e para ficar vivo.
Deste modo, de forma muito criativa e interessante, Felicioli e Gagnol exploram a possibilidade desta projeção fora do corpo para tornar o jovem Léo como o verdadeiro herói da história. Ele ajuda Tannet em sua empreitada atrás do bandido que está colocando a cidade em perigo e, ao mesmo tempo, salva a repórter corajosa Mary de virar uma vítima do criminoso.
A animação do filme é delicada e interessante, mesclando bem a realidade de Nova York e algumas obras que já homenagearam a cidade – desde pinturas, alguns quadrinhos até os filmes policiais de algumas décadas atrás. O visual é muito bacana, e o roteiro acompanha este trabalho com uma história envolvente e que, como comentei antes, equilibra todos os elementos para tornar a experiência divertida.
Ainda que o desenvolvimento do roteiro seja um tanto previsível – não é difícil imaginar como a história vai terminar -, Phantom Boy entrega uma história de qualidade para todas as idades. E o mais bacana de tudo: colocando um garoto que está passando por um desafio realmente complicado como protagonista da produção.
No fim das contas, não importa o quanto do filme é uma fantasia ou tem uma ligação com a realidade. Phantom Boy conta a história de um menino que é um verdadeiro herói por enfrentar uma doença e o seu tratamento com coragem e sem perder a capacidade de admirar um dos heróis da nossa sociedade, que é a figura de um policial/agente da lei.
Os bons valores estão nesta produção, inclusive a capacidade de sonhar e de ajudar o próximo. Léo nos dá diversas lições importantes, e isso é louvável em um filme de animação que não foge de temas espinhosos. Mais uma bela e sensível produção francesa, desta vez de animação. Eu não costumo ver tantos filmes deste gênero, por isso é bom encontrar um exemplar “mais adulto” como este pela frente. Bem dirigido, com uma história envolvente e com uma conexão com a realidade interessante, Phantom Boy é um belo achado. Recomendo.
NOTA: 9.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Como sempre, alguns elementos fazem toda a diferença na condução de um filme de animação como esse. Entre outros elementos, vale destacar a ótima trilha sonora de Serge Besset, bastante envolvente e que casa com perfeição com a narrativa. Também vale destacar a edição feita por Hervé Guichard; o departamento de som com 19 profissionais que fazem um trabalho fundamental; e o departamento de animação com outros 14 profissionais talentosos. Este grupo, junto com os demais profissionais envolvidos no projeto, é que são responsáveis pelo sucesso de Phantom Boy.
Algo interessante desta produção é que ela tem a sinceridade e a “linguagem direta” das crianças. Elas perguntam de forma clara quando tem dúvidas e são sinceras também em seus sentimentos e em suas motivações. É bonito ver o contexto todo ao redor do protagonista. A família dele, com destaque para a irmã mais nova, Lily, e as demais pessoas que o cercam, como a médica do hospital e o novo “melhor amigo” do nosso herói, o policial Tannet.
Em um certo momento da produção, o vilão da história fala sobre as suas motivações: ele quer justiça, vingança e dinheiro. A última parte fica bastante clara e evidente, mas as duas primeiras nem tanto. Isso porque o roteirista Alain Gagnol decide não dar voz para o criminoso, que acaba não explicando realmente as suas motivações doentias – ou a razão dele ter sido desfigurado, algo que ele ameaça contar em mais de uma ocasião.
Esta escolha me pareceu bastante francesa… um país que sofre com atentados terroristas e que diz que vai continuar defendendo a liberdade, a igualdade e a fraternidade apesar dos argumentos contrários dos assassinos (argumentos estes que eles não costumam propagar ou disseminar). Afinal, no final das contas, não existe espaço para dois discursos prevalecerem. Ou você dá espaço para o discurso do criminoso, ou abre frente para o discurso do herói. França, Estados Unidos e este filme deixam claro para qual discurso eles querem dar visibilidade.
Phantom Boy estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto em setembro de 2015. Depois, o filme participaria, ainda, de outros 15 festivais, sendo o último deles o Festival de Cinema de Sidney em junho de 2017.
Não encontrei informações sobre os custos de Phantom Boy, mas vi que esta produção fez pouco mais de US$ 34,3 mil nas bilheterias americanas. Me parece que esta produção fez um caminho realmente de festivais, estreando em uma quantidade reduzida de cinemas em seus pouco mais de dois anos de trajetória.
Falando em festivais, Phantom Boy concorreu a dois prêmios, no Festival de Cinema de Hamburgo e no Festival Internacional de Cinema de Seattle, mas ele não saiu com nenhum prêmio destas competições. Foi apenas indicado.
O diretor Jean-Loup Felicioli e o roteirista Alain Gagnol tem nove trabalhos em parceria – dos 10 que cada um desenvolveu em suas carreiras até o momento. Felicioli tem apenas um curta que ele dirigiu antes de começar a parceria com Gagnol, o curta Sculpture Sculptures, feito em 1989. A partir daí, todos os trabalhos dele como diretor contaram com Gagnol como roteirista e como parceiro na direção. Por sua vez, Gagnol tem apenas um projeto como roteirista que não contou com Felicioli como diretor: HS – Hors Service, escrito por ele e lançado em 2001.
A dupla de diretores tem uma identidade muito própria e se tornou ainda mais conhecida em 2012, quando eles tiveram o longa de animação Une Vie de Chat indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação. Eles perderam a disputa por uma estatueta dourada para Rango, dirigido por Gore Verbinski. Mas, pela trajetória dos dois, dá para perceber que eles tem talento e que vale acompanhar o trabalho de Felicioli e Gagnol.
Os usuários do site IMDb deram a nota 6,6 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 41 críticas positivas e seis negativas para o filme, o que lhe garante uma aprovação de 87% e uma nota média 7. Especialmente a avaliação dos críticos foi bastante positiva, acima da média.
Todos os atores que dão vida para os personagens do filme estão bem, com destaque, claro, para os personagens principais. A conhecida atriz Audrey Tautou dá a voz para a jornalista Mary, enquanto Edouard Baer faz a voz de Alex Tanner e Gaspard Gagnol faz um excelente trabalho como Léo. Além deles, vale citar o bom trabalho de Jean-Pierre Marielle como o vilão com a “cara quebrada”; Brian T. Delaney como o pai de Léo e Eileen Stevens como a mãe do garoto; Rachel Salvatierra como a irmã mais nova, Lily; Bill Lobley como o capitão Simon e Philippe Peythieu como o prefeito.
Phantom Boy é uma coprodução da França com a Bélgica.
CONCLUSÃO: Um filme envolvente e que equilibra de uma forma muito interessante o lado “humano” de um drama muito particular, a fantasia e a criatividade de uma criança, com a aspereza de fatos duros do nosso cotidiano. Phantom Boy trata da dura realidade de um menino que passa por um tratamento angustiante e que consegue, de uma maneira muito particular, sair do próprio corpo para ser o herói da sua cidade. Animação muito bem feita, com um belo visual e uma narrativa surpreendente. O filme consegue ter a sensibilidade francesa e alguns dos elementos mais bacanas do cinema americano – para o qual, parece, esta produção rende homenagem. Vale conferir.