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Den Skyldige – The Guilty – Culpa


Saber ouvir é algo fundamental. E nem sempre tão simples quanto parece. Não basta apenas deixar a outra pessoa falar, mas saber fazer as perguntas certas e dar o espaço necessário para o outro. Agora, imagine tudo isso em questões que podem ser limite e/ou perigosas. É sobre isso e sobre outros temas que trata Den Skyldige, o primeiro filme habilitado para concorrer ao Oscar 2019 de Melhor Filme em Língua Estrangeira que assisto e comento aqui no blog. Um filme incrível, envolvente e muito interessante. Den Skyldige demonstra, na prática, como um roteiro bom faz toda a diferença.

A HISTÓRIA: Um telefone toca. O policial Asger Holm (Jakob Cedergren) coloca os fones de ouvido com microfone para atender. Ele diz que fala da Central de Emergência. Ele tem que repetir a informação para que a outra pessoa peça socorro. Asger pede o endereço para o homem com quem ele está falando, Nikolaj. O homem só diz que está ficando sufocado, que não consegue respirar e que ele não está em casa. Mas não sabe dizer também onde está. Asger pergunta se ele tomou alguma droga. O homem confirma. Asger segue atendendo aos chamados, até que um deles lhe chama a atenção porque parece um sequestro. A noite do policial plantonista muda radicalmente a partir deste ponto.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Den Skyldige): Fiquei encantada com esse filme. Devo dizer isso logo de início. Quem me acompanha aqui no blog há algum tempo sabe o quanto eu defendo um bom roteiro. Para mim, este é sempre o elemento mais importante de uma produção.

Depois, claro, como elementos importantes de um filme, vem uma boa direção, um ótimo trabalho de atores e outros fatores que variam de estilo de produção para outro estilo de produção – como efeitos visuais e especiais, edição, figurinos, trilha sonora e etc.

Mas sem um bom roteiro, dificilmente um filme se sustenta. E o que nós temos em Den Skyldige? Essencialmente, um ótimo roteiro, mérito do diretor Gustav Möller e de Emil Nygaard Albertsen. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Porque o filme, convenhamos, se passa todo em um mesmo ambiente, em um andar com diversas mesas, computadores e telefones em que um grupo de pessoas atendem à chamados de emergência e dá prosseguimento para estes pedidos de ajuda.

Durante grande parte do tempo, a câmera do diretor Gustav Möller está focada no protagonista desta história, o ótimo ator Jakob Cedergren. Ele interpreta a Asger Holm, um policial que foi afastado das ruas enquanto é investigado pela morte de uma pessoa durante um de seus dias de serviço. O roteiro de Möllere de Albertsen mergulham na cabeça desse policial, que vive uma noite especialmente tensa por diversas razões.

Primeiro, porque ele está literalmente na véspera de ter a sua vida decidida. No dia seguinte, ele será julgado pela morte de uma pessoa. Esse julgamento poderá acabar com a carreira dele ou fazer com que ele volte para as ruas – essa segunda opção é evidentemente o que ele deseja. Aqui e ali, durante a narrativa, ficamos sabendo mais detalhes sobre o protagonista.

Ele ter sido afastado das ruas cobrou um preço alto de Asger. Inclusive a mulher dele saiu de casa e, aparentemente, ele se afastou de outras pessoas próximas. Ele vivencia essa pressão na noite em que a narrativa acontece. Mas o mais interessante do filme não é apenas revelar a personalidade do protagonista pouco a pouco, mas mostrar a rotina cheia de desafios de quem desempenha aquela função de atender a chamados de emergência.

Essencialmente, ouvimos a três casos de emergência atendidos por Asger naquela noite. Nos dois primeiros, ele deixa claro que tem uma postura que é típica de muitos policiais. Ou seja, eles se preocupam com as pessoas, querem ajudar, mas não deixam de “julgar” no processo. Assim, ele é um tanto irônico e crítico com o sujeito que está em perigo porque se encheu de drogas e com um outro sujeito que foi roubado por uma prostituta.

Mas a terceira ligação que ele recebe acaba mudando toda a noite de Asger e remetendo os espectadores desse filme em uma trama envolvente e angustiante. Cada linha do roteiro foi pensada de forma precisa para nos levar em uma montanha-russa de emoções e sensações. Conseguimos nos colocar facilmente no lugar de Asger, que não pode sair para as ruas para tentar ajudar a Iben (voz de Jessica Dinnage), mas está trancado naquele ambiente em que ele só tem a fala, a psicologia e o seu conhecimento prático como policial como recursos à seu favor.

Não ver os fatos acontecendo, apenas ouvir a ação e imaginá-la tem um efeito muito forte em quem assiste ao filme. É o mesmo envolvimento e a mesma emoção de quando estamos lendo a um ótimo livro. Isso diferencia Den Skyldige da maioria das produções que assistimos e que utilizam, como é típico do cinema, a imagem como um de seus principais recursos.

Assim, de forma muito inteligente, Möller subverte a própria lógica “natural” do cinema para nos apresentar uma história cheia de originalidade. Pouco a pouco, vamos nos envolvendo no sequestro de Iben e em todos os fatos que envolvem aquela situação. O filme apresenta algumas reviravoltas interessantes, sendo algumas delas um tanto previsíveis, enquanto outras são realmente impactantes.

Den Skyldige apresenta alguns questionamentos interessantes. Primeiro, que não são apenas policiais que, diante de alguns fatos, julgam aos demais sem ter detalhes sobre o que está acontecendo com estas pessoas. Nós também fazemos isso, mesmo que não notemos isso com a frequência que deveríamos.

Depois, esta produção mostra como podemos fazer leituras equivocadas dos fatos com uma certa facilidade. Mesmo bem treinado e experiente, Asger Holm também se equivoca com a história de Iben. E quais são as razões para os erros do protagonista? Primeiro, claro, o seu próprio “background” e experiência de vida e na profissão.

(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). O mais comum, claro, é que um marido que não deseja a separação e que foi separado dos filhos acabe perdendo o controle e, ao sentir-se “proprietário” da ex-mulher, aja de forma violenta com ela e até com os filhos. Diversas histórias da vida real nos mostra essa possibilidade. Diante destes fatos, Asger Holm inicialmente acredita na versão de que Iben é a vítima e de que o ex-marido dela é o vilão da história.

Mas perto do final, ele descobre que esta interpretação dos fatos não era verdadeira. Na verdade, todos eram vítimas naquela história, inclusive Iben, que passava por uma crise – provavelmente de esquizofrenia. Ao tentar ajudar, Asger Holm ultrapassa em muito a sua função, naquela atividade que estava desempenhando e, por muito pouco, acaba não piorando ainda mais toda a situação.

Isso nos faz pensar sobre a nossa própria interpretação dos fatos e em como as nossas ações podem melhorar ou piorar os acontecimentos. Den Skyldige nos apresenta isso de forma bastante franca, direta e envolvente. Além de nos fazer refletir sobre os nossos pré-julgamentos, a interpretação que fazemos dos fatos – e que pode estar equivocada – e sobre a nossa responsabilidade sobre como influenciamos a realidade alheia, esse filme também nos faz refletir sobre o nosso próprio “background”.

O quanto esse “background” nos define ou nos limita? O quanto colocamos esse background em questão quando somos confrontados com situações ou fatos novos? No caso do protagonista de Den Skyldige, o background dele é bastante determinante para as suas ações no caso de Iben. Ele se sente culpado pela morte que causou e, por causa disso, se vê especialmente envolvido por um outro caso em que ele sente que poderá fazer a diferença.

Então o que separa vilões ou bandidos de heróis? Por muito pouco, Asger Holm não coloca mais uma morte na sua consciência. E isso porque ele queria apenas ajudar. Assim, Den Skyldige nos mostra que, muitas vezes, não importa o quanto estejamos “revestidos” de boas intenções. O nosso background e os nossos julgamentos equivocados podem sim nos tornar vilões de uma história.

A vida é frágil e nós somos limitados. Podemos não admitir isso com a frequência que deveríamos, mas sim, somos bastante limitados. A nossa compreensão é limitada. A nossa capacidade de fazer o bem, também. Den Skyldige acerta em cheio ao nos fazer refletir sobre tudo isso. E sem discursos ou seguindo uma fórmula conhecida, mas nos apresentando uma narrativa muito interessante, envolvente e original.

Com esse filme, tive um belo começo nessa trajetória de buscar conferir ao máximo de filmes que estão concorrendo a uma vaga no próximo Oscar. Sim, o Oscar é uma premiação cheia de interesses da indústria do cinema dos Estados Unidos e a premiação nem sempre reconhece os melhores filmes na disputa. Mas através do Oscar, conseguimos conhecer a vários filmes interessantíssimos. Esse é o caso de Den Skyldige.

NOTA: 9,7.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Se você assistiu a esse filme e leu essa crítica, pode estar pensando: “Mas se ela gostou tanto do filme, por que não deu uma nota maior para ele?”. Admito que eu pensei em dar a nota para este filme. Pensei algum tempo em dar 10 para Den Skyldige. Mas acabei não fazendo isso por uma razão, especificamente.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). A narrativa é muito bem construída, a direção é interessante e o trabalho do protagonista é fenomenal, mas eu achei um pouco “exagerado” aquele final da produção. A tomada de consciência de Iben e a perspectiva dela se matar tornam o filme mais complexo, mas também um tanto dramático além do desejado. Sem contar que ela ter se salvado, digamos assim, não seria o mais previsível. Parece que os roteiristas resolveram “aliviar” a barra do protagonista nos minutos finais. Por um lado, isso é interessante, porque é a “surpresa” final do filme. Mas, por outro lado, torna o desfecho um tanto dúbio – ele realmente é um “herói”? Para mim, Den Skyldige perde alguns décimos de ponto naquela reta final.

A grande qualidade de Den Skyldige é o seu roteiro, sem dúvida alguma. Um grande trabalho de Gustav Möller e de Emil Nygaard Albertsen. Eles cuidam de cada frase, de cada detalhe da ação. Um grande trabalho, sem dúvida. Gustav Möller também merece parabéns pela sua direção. Afinal, não é fácil tornar uma narrativa atraente tendo, basicamente, uma câmera e um ator em cena, e apenas isso. As escolhas dele de ângulo e a forma com que ele posiciona a sua câmera, variando os detalhes conforma a narrativa se desenrola, mostra todo o talento do diretor. Um grande trabalho, sem dúvida.

Esse é um filme de um homem só, praticamente. Sim, temos um ou outro personagem que aparece por poucos segundos em cena, assim como temos as vozes das pessoas com quem Asger Holm fala durante a produção mas, essencialmente, Den Skyldige tem apenas um ator em cena: Jakob Cedergren. Agora, imaginem se ele fosse um ator ruim. Não conseguiríamos assistir a esse filme até o final, mesmo que o roteiro fosse ótimo. Então sim, outra grande qualidade deste filme é o trabalho de Cedergren. Grande ator! Um prazer vê-lo em um papel como esse, que valoriza tanto o seu talento.

Além de Jakob Cedergren, aparecem em cena, com participações/”interferências” muito rápidas, os atores Morten Thunbo, Maria Gersby e Anders Brink Madsen, todos operadores da sala de emergência, assim como Asger Holm.

Ainda que não apareçam em cena, vale comentar o bom trabalho de outros atores que interagem com o protagonista, mas que “aparecem” no filme apenas com as suas vozes: Jessica Dinnage como Iben; Omar Shargawi como Rashid, ex-colega de farda do protagonista; Johan Olsen como Michael, ex-marido de Iben; Jacob Lohmann como Bo, que era chefe de Asger; Katinka Evers-Jahnsen como Mathilde, filha de Iben e Michael; e Jeanette Lindbaek como a atendente de Nordsjaelland. Eles são importantes para a evolução da história, ainda que conferimos as suas interpretações apenas por suas vozes.

Entre os aspectos técnicos deste filme, destaque para a edição de Carla Luffe Heintzelmann e para a direção de fotografia de Jasper Spanning. Também merece ser mencionado o trabalho de Gustav Pontoppidan no design de produção.

Den Skyldige estreou em janeiro de 2018 no Festival de Cinema de Sundance. Depois, o filme participaria, ainda, de outros 27 festivais em diversos países. Nessa trajetória, o filme conquistou 14 prêmios e foi indicado a outros 14. Desta lista de prêmios, vale comentar o prêmio de World Cinema – Dramatic dado pelo público do Festival de Cinema de Sundance para Gustav Möller; o Critic’s Choice Award para Gustav Möller no Festival de Cinema de Zurique; e o Golden Blogos Award para Gustav Möller e o prêmio de Melhor Roteiro dados no Festival Internacional de Cinema de Valladolid.

Fiquei curiosa para saber mais sobre o roteirista e diretor Gustav Möller. Pesquisando sobre ele, vi que Den Skyldige é o seu primeiro longa-metragem. Olhem só! Antes, ele tinha apenas dirigido a um curta e a dois episódios de uma série de TV. Ou seja, eis um nome que merece ser acompanhado. Acho que ele pode nos surpreender bastante ainda.

Com Den Skyldige eu abro a série de críticas que procuram antecipar alguns dos principais concorrentes ao Oscar 2019. Den Skyldige é o representante da Dinamarca no prêmio da Academia da Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Além de Den Skyldige, outros 85 filmes de diferentes países procuram uma vaga entre os cinco finalistas ao prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019. Bóra lá conferir ao máximo de filmes possíveis que tem alguma chance no Oscar a partir de agora.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,8 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 74 críticas positivas e apenas uma negativa para o filme – o que garante para Den Skyldige uma aprovação de 99% e uma nota média 8. No site Metacritic, Den Skyldige apresenta um “metascore” de 83, fruto de 23 críticas positivas. Além disso, o filme apresenta o selo “Metacritic Must-see”. Notas muito boas e acima de média dos sites.

Den Skyldige é uma produção 100% da Dinamarca.

CONCLUSÃO: Um filme que consiste, basicamente, em um ator falando com pessoas por telefone. Aparentemente, esse filme pode se enfadonho, mas isso é tudo que Den Skyldige não é. Mais uma vez o cinema dinamarquês nos apresenta uma ótima história, com um roteiro exemplar e um excelente trabalho do protagonista. Um filme envolvente, angustiante e que mexe com qualquer pessoa que consiga se colocar no lugar das pessoas que fazem parte desta história. Criativo, realista e bastante humano, nos apresenta uma história diferenciada e que merece ser conferida.

PALPITE PARA O OSCAR 2019: Claro que é cedo para ter uma aposta mais certeira na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeria. Afinal, Den Skyldige é o primeiro filme de uma lista com 86 títulos que buscam uma vaga no Oscar 2019 que eu assisto. Mas desde já eu posso dizer que vejo esse filme com um grande potencial para chegar até os cinco finalistas nessa categoria que costuma ser uma das melhores e uma das mais concorridas do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Para o meu gosto, mesmo sem ter assistido a nenhum outro filme na disputa ainda, posso dizer que Den Skyldige merecia estar entre os indicados e que não seria injusto se ele levasse a estatueta para casa. Por todas as razões que eu comentei antes, esse filme é muito bem acabado e surpreendente. Ele funciona muito bem, apresenta uma narrativa realmente original e tem uma duração perfeita. Depois de assisti-lo, terei uma régua alta de comparação com os próximos filmes que eu iriei assistir.

Então sim, acho que Den Skyldige pode chegar entre os cinco finalistas em Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019 e que pode até vencer nesta categoria. Veremos o que eu vou achar sobre estes aspectos depois de ter assistido aos concorrentes dele.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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