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Yeelen – Brightness – A Luz


Existe uma diversidade impressionante de culturas, modos de agir e de ser no mundo. Pena que nem sempre as pessoas pensem sobre isso. Yeelen é um destes filmes que nos apresenta uma destas formas de ser e de agir diferentes das nossas. Nos apresenta uma cultura que é “estranha” mas que, não por causa disso, é menos valiosa que a nossa ou que qualquer outra. Ver a um filme como este nos faz lembrar de que existem muitas formas de pensar e de agir diferentes da nossa. E isso é o que faz a Humanidade ser tão interessante.

A HISTÓRIA: Começa com símbolos que explicam que o calor faz o fogo e os dois mundos (terra e céu) existem na luz. Em seguida, a introdução da história fala sobre o Komo, que para o povo bambara quer dizer a encarnação do saber divino. Os ensinamentos do Komo estão baseados no conhecimento dos “signos” (letras/sinais), dos tempos e dos mundos. Este conhecimento abrange os campos da vida e do saber.

O Koré é a sétima e a última sociedade de iniciação bambara, e ela é simbolizada pelo abutre sagrado “Mawla Duga”, ave de espaços abertos na casa, da guerra, do saber e da morte. Seu emblema é um cavalo de madeira, símbolo da diligência do espírito humano, e seu cetro é uma tábua lavrada chamada Koré “Kaman” ou a Asa do Koré. O “Kolonkalanni” ou martelo mágico serve para encontrar quem se perdeu, para descobrir e castigar os patifes, os ladrões, os criminosos, os traidores e os mentirosos. A Asa do Koré e o martelo mágico são usados em Mali há milhares de anos. O que vamos ver na sequência é o uso destes elementos da cultura bambara em uma história de perseguição e confronto.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Yeelen): Este filme começa dando o recado logo na cena inaugural. Depois daquela explicação sobre a cultura e o modo de viver dos bambara, somos apresentados a um sol gigante, no alvorecer de um novo dia, e a um frango em chamas. Pois sim. O sacrifício é um elemento que aparece em diversos momentos desta produção.

Yeelen nos fala de luz – esse nome significa justamente isso, “a luz” -, mas o filme está carregado de sombras, de magia e de morte. Os sacrifícios são uma constante, assim como perpassa toda a história uma certa luta entre o bem e o mal. Para muitos também assistir a Yeelen pode ser um sacrifício – e eu não os culpo. Este é um dos filmes mais distantes de tudo o que a maioria está acostumada a assistir.

Não temos o ritmo ou a preocupação estética de Hollywood. Nem temos uma grande preocupação com a história ou com o desenvolvimento dos personagens como boa parte do cinema europeu. Nada disso. Vemos pela frente sim uma história, com começo, meio e fim. Mas essa história é contada bem ao gosto da cultura que ela foca. Ou seja, sem pressa, com uma dinâmica fragmentada e o máximo possível “legítima”, com pessoas interpretando personagens sem ter realmente estudado para isso.

Este tom um tanto documental da produção que tem direção e roteiro de Souleymane Cissé é um dos pontos fortes da produção. Afinal, quantas oportunidades você teve de assistir a um filme de Mali? Que não só fosse ambientado naquele país africano, mas que jogasse para o mundo um pouco da história e dos costumes de um dos povos que formou aquele continente tão esquecido pelo mundo? Este é o grande mérito deste filme.

Yeelen pode ser um tanto difícil de assistir. Pode cobrar de você mais de uma tentativa – como foi o meu caso… tive que assistir o filme em dois dias porque no primeiro estava cansada demais para acompanhar a narrativa um tanto “lenta” e “repetitiva” desta produção. Mas é bacana ver que um cineasta conseguiu apresentar para o mundo uma história legítima de um povo que nunca ganha voz ou vez no cinema. Apenas por causa disso este filme merece ser visto.

Agora, descontada esta parte de interesse um tanto antropológico e sociológico, algo que todas as pessoas deveriam buscar um pouco ao menos em algum momento da vida, vamos falar sobre a história apresentada pelo filme. Pode parecer loucura da minha parte, mas vi um bocado de Shakespeare nesta produção. Alguém poderia dizer que não existe nada mais distante do que a obra do bardo inglês e os costumes bambara, mas eu vi semelhanças.

Me explico. Para começar, vendo o sacrifício do galo, queimado vivo, e tantas outras cenas de pura magia nesta produção, me lembrei daquela frase de Shakespeare de que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Ou seja, por mais “toscas” que algumas cenas desta produção possam parecer – como quando Niankoro (Issiaka Kane) “congela” o ataque dos inimigos -, não devemos duvidar de quase nada. Afinal, sim, existe a magia. E existem pessoas que conseguem fazer coisas incríveis. Então não devemos duvidar apesar de parecer absurdo.

Além disso, também é clássica a disputa entre pai e filho. Isso me lembra Shakespeare na mesma medida que me lembra um pouco o Complexo de Édipo… ainda que a mãe de Niankoro não jogue um papel fundamental durante a produção inteira, ela está presente, sem dúvida, na disputa do pai, Soma (Niamanto Sanogo) contra o protagonista desta produção.

A justificativa de Soma para perseguir o filho é que ele “traiu” as tradições ao fugir – na verdade ele foi levado pela mãe – com parte dos objetos sagrados que permitiam que eles pudessem fazer a magia, ter poder e “proteger” o seu povo. Mah (Soumba Traore), por sua vez, justifica ter levado o filho para longe porque o pai dele seria um homem cruel e abusivo. Ela teria feito isso, em resumo, para proteger o filho. O garoto cresce longe do pai, mas chega um dia em que Soma resolve procurá-los.

Yeelen nos conta a história a partir daí. Da perseguição de Soma e da tentativa de Mah e de Niankoro a sobreviverem à vingança dele. Mah vai para um lado, buscando um rio sagrado para se purificar e para pedir pela vida do filho. Niankoro, por outra parte, anda sozinho por muito tempo até que encontra com a tribo de Rouma Boll, o rei Peul (o interessante e expressivo Balla Moussa Keita). Para se livrar de um ataque, Niankoro usa a magia. Vendo o poder do jovem prisioneiro, Rouma Boll resolve pedir a ajuda dele para enfrentar uma tribo inimiga.

A intervenção de Niankoro acaba sendo decisiva, e o rei Rouma Boll convida o forte aliado a permanecer por ali. Niankoro diz que precisa ir embora, mas resolve aceitar um último pedido do rei. Ele é convocado para ajudar a mais jovem esposa de Rouma Boll, Attou (Aoua Sangare) a engravidar. Aparentemente ela é estéril. Niankoro sai com Attou para tentar ajudar o rei, mas acaba se encantando pela garota. Os dois traem o rei, mas falam a verdade e, ao invés de serem mortos, são expulsos do local.

Desta forma, a história de Niankoro se encaminha para que a profecia do “homem-leopardo-com-cabeça-de-macaco” se cumpra. Realmente Niankoro terá uma vida feliz – ainda que curta – e vai terminar sua trajetória de forma iluminada. (SPOILER – não leia se você não viu ao filme). Ele tem tempo de fugir com Attou por um período e engravida ela, mas não escapa – e nem deseja isso – do confronto com o pai. Diferente do que Mah previa, Niankoro consegue, com a ajuda do tio que era gêmeo de Soma, enfrentar o pai de igual para igual.

Os dois acabam morrendo, mas Niankoro deixa um filho como herdeiro. O garoto vai crescer sem ser perseguido, um futuro melhor do que o pai teve. E, desta forma, esta produção sobre uma cultura tão diferente nos mostra que disputas familiares sempre existiram e parecem se renovar com o tempo independente da latitude.

Sobre a história, achei interessante a forma com que Yeelen nos apresenta a trajetória de um homem que procura o seu próprio destino e que o aceita com bastante tranquilidade. Ele sabe o que precisa fazer e sabe que, mesmo que sem desejar o confronto, terá que enfrentar o próprio pai para terminar com aquela sequência de maldades e garantir a paz para o seu filho e mulher. Ele não vive muito tempo junto com a esposa e não chega a conhecer o filho, mas sabe o que virá após a sua partida e isso lhe traz paz antes da morte. Apesar do formato da história ser muito diferente do que estamos acostumados, a mensagem que o filme deixa é interessante.

A morte faz parte da vida, assim como as disputas e os confrontos, Mas é preciso aceitar o nosso destino e abraçá-lo quando ele faça sentido – que o diga Game os Thrones. 😉 O personagem central desta história nos mostra isso. E o filme, de quebra, revela que sempre após a morte surge uma nova vida. O sol sempre desaparece, no final de cada dia, dando lugar para a escuridão e para o “desalento”, mas no dia seguinte o sol surge novamente, trazendo ânimo para as pessoas e vida.

Achei os atores, ainda que inexperientes, muito bons. Cissé soube valorizar a beleza que ele tinha nas mãos, especialmente dos atores principais, na mesma medida em que soube valorizar em detalhes a forma de ser e agir daquelas tribos. Este é um filme diferente, que dá um tanto de sono, mas que merece ser visto por ser um raro exemplo de filme africano legítimo. A história pode ser um tanto fraca, mas a narrativa é bem construída – descontadas algumas repetições um tanto cansativas. Vale mais pelo interesse sociológico, sem dúvida.

NOTA: 7,5.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Eu não lembro quantos filmes africanos eu assisti na vida. Mas foram poucos, muito poucos, não tenho dúvidas. A África é, infelizmente, um continente um bocado esquecido pelo mundo. Digo isso em geral. Em relação ao cinema africano, então, muito mais. Por isso mesmo é bacana pensar que um filme como este tornou-se importante há 30 anos atrás, em 1987. Um importante documento, sem dúvidas, de uma cultura pouco conhecida e bastante ignorada.

Como eu descobri este filme? Ora, como tantas outras produções históricas e pouco comentadas e que volta e meia viram foco de críticas aqui no blog. A recomendação de Yeelen veio através do livro “1001 Filmes para Ver Antes de Morrer”. Como vocês que me acompanham há mais tempo sabem, este livro serve de base para a seção “Um Olhar Para Trás” que eu criei aqui no blog para falar de filmes que estão fazendo aniversário e que fazem parte da história do cinema mundial.

Como foi o livro “1001 Filmes para Ver Antes de Morrer” que me indicou este filme, vale citar a crítica de Jonathan Rosenbaum que faz parte da obra: “A Luz, uma bela e hipnótica fantasia do diretor Souleymane Cissé, transcorre na antiga cultura Bambara de Mali, muito antes que fosse invadido pelo Marrocos no século XVI. Um jovem chamado Niankoro (Issiaka Kane) parte com o objetivo de descobrir os mistérios da natureza – ou komo, a ciência dos deuses – com a ajuda de sua mãe (Soumba Traore) e do tio (Ismaila Sarr). Mas Soma (Niamanto Sanogo), o pai ciumento de Niankoro, prepara uma trama para impedi-lo de decifrar os elementos dos rituais sagrados dos Bambara e tenta matá-lo”.

E a crítica de Rosenbaum segue assim: “Além de criar um universo denso e excitante que deveria deixar George Lucas verde de inveja, Cissé filma suas imagens impressionantes em Fujicolor e acompanha a sua história com uma trilha esparsa, hipnótica e percussiva. Misturando habilmente coisas triviais com profundos mistérios, esta obra formidável ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes em 1987. Como um todo, A Luz é uma apresentação ideal a um diretor que, junto com Ousmane Sembène, é um dos melhores da África”.

A direção de Souleymane Cissé é, sem dúvida, o ponto alto desta produção. Os atores que têm destaque na história também estão muito bem. Eles são expressivos e apresentam um trabalho convincente. Além disso, como bem destacou Rosenbaum, a trilha sonora bastante pontual de Salif Keita e de Michel Portal também é um elemento importante da produção. Finalizando os destaques técnicos, vale citar a ótima direção de fotografia de Jean-Nöel Ferragut e de Jean-Michel Humeau.

Além desta equipe, vale comentar o trabalho de edição de Douanmba Coulibaly, Andrée Davanture, Jenny Frenck, Nathalie Goepfert, Seipati Keita, Marie-Catherine Miqueau e Seipati N’Xumalo; o design de produção e os figurinos de Kossa Mody Keita; os efeitos visuais de Philippe Tourret; e os efeitos especiais de Frédéric Duru e de Nikos Meletopoulos.

O diretor e roteirista Souleymane Cissé tem, hoje, 77 anos e um currículo com nove longas. Ele estreou na direção com Cinq Jours d’Une Vie em 1973. Os últimos dois filmes dele, O Sembene! e O Ka, de 2013 e 2015, respectivamente, foram os seus únicos documentários. Todos os outros foram longas de ficção.

Yeelen estreou no Festival de Cinema de Toronto em setembro de 1987. Depois, até 2016, o filme participaria ainda de outros cinco festivais. Em sua trajetória, esta produção conquistou cinco prêmios e foi indicada a outros dois. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o Prêmio do Júri e para o Prêmio do Júri Ecumênico – Menção Especial no Festival de Cinema de Cannes; e para o Sutherland Trophy no Prêmio do Instituto de Cinema Britânico.

Esta produção foi totalmente rodada em Mali, país africano que não tem saída para o mar e que é vizinho da Argélia, da Nigéria, da Mauritânia e de Guiné, entre outros. Fica a noroeste do continente africano e tem, segundo Banco Mundial, cerca de 18 milhões de habitantes. A capital do país é Bamako, e a língua oficial, hoje em dia, é o francês. Yeelen foi rodado em cidades como Dilly, Dra, Drani, Falani, Hambori, Mopti, Moutoungouta e Sangha.

O destaque desta produção em termos de interpretação, para o meu gosto, são os atores Issiaka Kane, Balla Moussa Keita e Soumba Traore – que interpretam, respectivamente, Niankoro, o rei Peul e a mãe de Niankoro. Também se saem bem Niamanto Sanogo como Soma, pai de Niankoro, e que interpreta também o tio do protagonista, Djigui. Vale citar também o trabalho de Aoua Sangare como Attou, que vira mulher de Niankoro; Youssouf Tenin Cissé como o filho deles; Ismaila Sarr como o outro tio do protagonista, Bofing; e Koke Sangare como o chefe Komo. Há outros personagens com certa relevância na história mas que não têm os seus personagens identificados nos créditos.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,2 para esta produção, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram seis críticas positivas e apenas uma negativa para o filme, o que garante para Yeelen a aprovação de 86% e uma nota média de 7,4.

Este filme é uma coprodução de Mali, Burkina Faso, França, Alemanha Ocidental e do Japão. Cinco países contribuíram para Yeelen existir. Há tempos eu não via recursos de tantos países contribuírem para uma produção sair do papel.

CONCLUSÃO: Um filme com narrativa lenta e protagonizado por pessoas que não são atores profissionais. Yeelen respeita, desta forma, a história que está contando. Não faria nenhum sentido se este filme seguisse o “mainstream” de Hollywood ou de outras escolas de cinema. Não. O que faz sentido é que ele realmente beba na fonte da cultura que está retratando. Desta forma, Yeelen se apresenta como uma grata surpresa entre os filmes que saíram das escolas tradicionais de cinema e que nos mostraram com competência culturas desprezadas pelo cinema. Vale tanto como uma obra de cinema diferenciada quanto por apresentar uma cultura ignorada e que não teria sobrevida no tempo se não fosse por este filme.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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