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Un Sac de Billes – A Bag of Marbles – Os Meninos Que Enganavam Nazistas


Os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial são quase uma constante. Dificilmente passamos muitos anos – ou algum ano? – sem uma nova produção sobre o assunto. As histórias sobre este período lamentável da trajetória da Humanidade não parecem ter fim, e isso é algo positivo. Especialmente porque eu acredito que a memória sobre fatos negativos é algo fundamental para não cairmos nos mesmos erros. Pois bem, Un Sac de Billes se junta a outros filmes sobre a Segunda Guerra Mundial para nos contar uma história interessante e tocante. Desta vez vamos a tragédia sob o ponto de vista de uma família de judeus. Um filme bem conduzido, com uma história impressionante e com atores carismáticos.

A HISTÓRIA: Agosto de 1944. Em uma rua deserta com bandeiras francesas e inglesas, no amanhecer de mais um dia, vemos um garoto descendo uma rua com a Torre Eiffel aparecendo discretamente ao fundo. Joseph Joffo (Dorian Le Clech) corre um pouco e observa tudo ao redor. Ele olha para a fachada da escola em que ele estudou antes de tudo mudar. Observa tudo atentamente e diz que tudo está igual, ainda que tudo pareça menor. Ele se questiona se não foi ele que cresceu. Pensa que se passaram dois anos e meio desde que esteve ali pela última vez. E aí a história volta para o passado, antes de Joseph ter que deixar a sua cidade e se separar de quase todos de sua família.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Un Sac de Billes): Este filme francês tem tudo que Hollywood ama. É uma produção que fala sobre a Segunda Guerra Mundial tratando do absurdo que foi a perseguição dos judeus pelos nazistas e ainda tem uma narrativa contada sob a ótica de uma criança. Sim, parece que não veremos nada de novo por aqui. Mas nem sempre o que precisamos é de uma história nova, e sim de uma narrativa competente.

E isso é algo que o diretor Christian Duguay nos apresenta. Uma narrativa muito competente. Vimos, até o momento, muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Muitos sob a ótima dos filmes de guerra, mostrando diferentes momentos do conflito entre os exércitos e suas nações. Assistimos a filmes de espionagem, a narrativas que enfocaram a estratégia das nações e uma e outra abordagem sobre a população envolvida no conflito. Também encontramos algumas histórias que focaram crianças e as suas óticas sobre o conflito.

Apesar deste terreno ter sido bem explorado, precisamos admitir que Un Sac de Billes tem uma narrativa bastante competente. Um dos principais méritos do filme é o desempenho do elenco escolhido com perfeição. Todos os atores estão ótimos, começando pelas crianças e seguindo para os adultos. O elenco é carismático e tem a sua interpretação valorizada pela lente sempre atenta de Duguay. Ele faz um trabalho muito competente e utiliza diferentes planos para sempre valorizar as interpretações e também o entorno pelos quais os personagens se movimentam.

As cidades são importantes, os caminhos percorridos, mas as pessoas estão sempre no centro da história escrita a cinco mãos. O roteiro original de Jonathan Allouche e Alexandra Geismar teve adaptação de Christian Duguay e Benoît Guichard, que contaram com colaboração de Laurent Zeitoun. Todos trabalharam sobre a história contada no livro de Joseph Joffo – sim, o protagonista deste filme. No final, vemos a ele e ao irmão Maurice (interpretado por Batyste Fleurial) em um café de Paris, onde eles voltaram a viver após o final da guerra.

Este filme tem força porque é baseado em uma história real. Os acontecimentos parecem incríveis e um tanto improváveis, mas foi assim mesmo que muitos sobreviveram na Segunda Guerra Mundial. De forma improvável, quase milagrosa. Un Sac de Billes têm o mérito de nos apresenta a história sob a ótica de pessoas simples, moradores de Paris que passaram a ser perseguidos pelo simples fato de serem judeus. A narrativa conduzida por Duguay nos mostra bem como o terror da perseguição foi crescendo de forma relativamente rápida.

Quando a história retorna no tempo, voltamos para o início de 1942, quando o conflito tinha pouco mais de dois anos. Naquele momento, apenas os estabelecimentos comerciais judeus eram identificados com placas. Joseph e o irmão Maurice ainda conseguem ver o pai deles sendo corajoso com dois soldados alemães que entram em sua barbearia. Mas não precisaria passar muito tempo para que aquela atitude dele não fosse mais possível.

Em maio de 1942 as pessoas começam a ser marcadas também. Vemos ao protagonista e aos seus irmãos tendo estrelas sendo colocadas na roupa para identificá-los como judeus. Alguns começam a hostilizá-los, e este episódio é a deixa para os pais dos garotos – eles eram em quatro irmãos – adotem uma postura muito corajosa.

Roman Joffo (Patrick Bruel) e a esposa Anna (Elsa Zylberstein) sabem que a família aumentará a chance de sobreviver se eles se dividirem. E é desta forma que eles mandam os filhos mais velhos, Henri (César Domboy) e Albert (Ilian Bergala) para o litoral na frente. Em seguida, enviam Joseph e Maurice. Finalmente, o casal também sai de Paris. Eles sabem que, desta forma, fica mais fácil pelo menos parte da família sobreviver. O filme acerta, aliás, ao não revelar, logo de cara, que se trata de uma história baseada em fatos reais. Porque se soubéssemos disso logo no início, iríamos presumir que o protagonista, ao menos, iria sobreviver.

Ainda que isso fique um tanto evidente na produção, é sempre bom manter a dúvida da audiência. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Existem vários momentos de tensão e quando Joseph e o irmão quase são pegos pelos nazistas. Eles sobrevivem por detalhes e pela ajuda de várias pessoas. Un Sac de Billes não alivia ao mostrar muita gente sendo presa e enviada para os campos de trabalho – e depois, de extermínio. Não escapavam adultos, idosos ou crianças. A primeira vez que os garotos escapam de um envio é quando contam com a ajuda de um padre no trem.

Para que o protagonista consiga voltar para Paris em 1944, quando esta produção apresenta os seus primeiros minutos, ele contou, junto com o irmão Maurice, com algumas intervenções fundamentais. Se não fosse a ajuda de dois padres, de um francês que os ajudou a chegar em uma zona livre de conflito, de um diretor de um centro de treinamento juvenil e de um médico que fazia a “triagem” de judeus para os alemães – todos eles sabendo que os garotos eram judeus -, eles não teriam sobrevivido.

Além disso, claro, eles contaram com a sorte e com a própria inteligência. Bem preparados pelos pais – inclusive em uma cena forte em que Roman esbofeteia o filho mais novo para prepará-lo para situações similares -, eles conseguem sobreviver apesar de todas as chances jogarem contra eles. Além das pessoas que eu citei, eles contaram com caronas de motoristas anônimos para chegar até o litoral francês onde, pela última vez, viveram momentos de alegria com toda a família reunida.

Finalmente, depois que tiveram que sair do centro de treinamento juvenil porque tinham o risco de serem pegos lá, eles passaram uma última temporada de sobrevivência contando com a ajuda de pessoas que, na verdade, não sabiam que eles eram judeus. Este é o caso do dono de livraria e vendedor de jornais Amboise Mancelier (Bernand Campan). Ele abriga e dá trabalho para Joseph sem saber que está dando guarita para um “inimigo” – ao menos sob a ótica dele, que era um colaborador dos nazistas. Maurice, por outro lado, é o empregado de um hotel onde vivem pessoas da Resistência.

Os irmãos conseguem sobreviver na última temporada com a ajuda de pessoas muito diferentes, mas que acabam se confrontando no final. Daí Joseph mostra toda a sua grandeza – e o quanto ele amadureceu com aquela experiência aterradora – ao defender Amboise quando ele é atacado após a libertação de Paris pelos ingleses. Impossível não celebrar, junto com o garoto, quando ele vê a manchete do jornal que dá a notícia sobre Paris.

Sim, o filme tem uma boa dose de previsibilidade e uma certa “exagerada de mão” para que o público se emocione com a história. A trilha sonora ajuda nisso, assim como a forma de direção bastante lírica de Duguay em diversos momentos. Mas cá entre nós, qual é o problema também em um filme buscar o nosso lado mais sentimental? Quando isso não é feito com muito exagero, funciona e não atrapalha a história. Considero que os roteiristas envolvidos neste projeto conseguem encontrar o tom exato, assim como os atores, que são muito carismáticos.

Todos convencem. Conseguimos acreditar na história que assistimos, ainda que ela tenha tantos momentos improváveis. Impossível não se deliciar com as peripécias de Joseph e de Maurice para sobreviver. Improvável que alguém também não fique impressionado com a força de cada pessoa daquela família em tentar sobreviver e ajudar ao menos uma outra pessoa da família a conseguir o mesmo. Eles estão sempre em dupla, e isso ajuda nas tentativas de escapar dos nazistas.

Ainda que o filme tenha alguns momentos bem pesados e duros – como quando o pai bate em Joseph e quando o garoto leva um golpe brutal de fuzil no rosto -, estes momentos nos revelam um pouco do absurdo que foram aqueles anos, aquela perseguição, aquele extermínio. Desta vez, diferente de outras produções, temos isso na nossa frente sob a ótica de pessoas comuns. Impossível não se solidarizar com eles.

Algo bacana de Un Sac de Billes é que ele demonstra, com muita propriedade, como a decisão cotidiana das pessoas pode fazer muita diferença, especialmente quando vivemos momentos de exceção nas nossas sociedades. Diversas pessoas que cruzaram o caminho dos protagonistas desta história tomaram a decisão de ajudá-los. Eles poderiam ter “lavado” as próprias mãos, cruzarem os braços e não agirem na hora certa. Tudo poderia ter sido muito diferente se aquelas pessoas não decidissem ajudar. Isso foi muito válido naqueles dias e é até hoje. Pequenos ou grandes gestos de auxílio podem sim fazer a diferença para alguém viver/sobreviver mais um dia. Eis uma mensagem importante desta produção.

Um belo filme, muito bem dirigido e conduzido. Só não é perfeito porque ele segue uma fórmula um tanto batida e já bem conhecida. É previsível, mesmo na “surpresa” final. Mas isso não o torna menos interessante. Como tantas outras produções sobre a Segunda Guerra Mundial, Un Sac de Billes deveria ser visto nas escolas. Para nunca nos esquecermos dos absurdos que um regime totalitário, preconceituoso e violento pode provocar.

NOTA: 9.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: O elenco deste filme é a sua grande qualidade. Fiquei impressionada pelo belo trabalho de todos os atores. Ainda que o elenco todo seja muito bom, impossível não destacar o talento dos jovens talentos que protagonizam esta produção. Dorian Le Clech e Batyste Fleurial como Joseph e Maurice, respectivamente, carregam a produção nas costas. Como eles nos conduzem por toda a história, impossível não ficarmos fascinados pelo carisma dos jovens atores. Eles estão ótimos.

Além deles, se destacam toda vez que aparecem em cenas os experientes atores Patrick Bruel e Elsa Zylberstein, respectivamente pai e mãe dos garotos. Eles também são muito carismáticos e convencem em cada micro detalhe de suas atuações. Estão ótimos. Aparecem menos, mas também fazem um bom trabalho César Domboy e Ilian Bergala, os atores que interpretam os irmãos mais velhos de Joseph e Maurice. Sem dúvida alguma o elenco é o ponto forte da produção.

Os atores que dão vida para a família que é o foco principal desta história são o destaque do filme. Mas o elenco de apoio também foi muito bem escolhido. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). O veterano Christian Clavier faz uma participação importante como o doutor Rosen, uma das pessoas que ajudam os garotos a sobreviver. Também merece ser citado o trabalho de Kev Adams como Ferdinand, um motorista que abastece o centro de treinamento juvenil e que acabamos por descobrir que é um judeu que participa da Resistência; Emile Berling como Raoul, o filho radical do também radical delator Amboise (interpretado por Bernard Campan); Coline Leclère como o “primeiro amor” de Joseph, a bela Françoise, filha de Amboise e de Marcelle (interpretada por Jocelyne Desverchère); Holger Daemgen como o capitão alemão Alois Brunner, oficial que quase dá um fim nos irmãos – eles escapam por pouco de uma armadilha orquestrada por ele.

Da parte técnica do filme, destaque para a excelente direção de fotografia de Christophe Graillot e para a difícil e competente edição de Olivier Gajan. A trilha sonora assinada por Quentin Boniface, Philippe Briand, Hugo Gonzalez-Pioli, Gabriel Saban, Steven A. Saltzman e Anne-Sophie Versnaeyen é bacana, mas poderia ser um pouco menos “protagonista”/sentimental. Destaque também para o trabalho de casting feito por Valerie Espagne e Juliette Ménager – especialmente para a primeira, que ficou responsável pelas crianças. Vale citar ainda o design de produção de Franck Schwartz; a direção de arte de Cécile Arlet Colin; a decoração de set de Jimena Esteve e de Hélène Maroutian; e os figurinos de Pierre-Jean Larroque. Todos fazem um trabalho muito bom e que nos ajuda a voltar 70 anos na História.

Não li o livro de Joseph Joffo, mas imagino que ele deve ser incrível. Assistindo a este filme eu fiquei com vontade de ler a obra original. E gostaria de saber a opinião de alguém que leu o livro para comentar sobre o filme. Será que ele consegue manter bem a “alma” da obra de Joffo?

Un Sac de Billes fez a sua première em Paris em janeiro de 2017. Depois, o filme participou de dois festivais: o de Belgrado, em fevereiro, e o de BCN, em abril. Nesta trajetória, não conquistou nenhum prêmio ou indicação. Também não encontrei informações sobre o custo ou a bilheteria da produção.

O título original em francês, assim como o título internacional da produção, pode ser traduzido como “Um Saco de Clicas”. No Brasil ele recebeu uma tradução bem diferente. Ainda que faça sentido o título original, desta vez eu tenho que admitir que o título brasileiro não é ruim. Apenas entrega um pouco demais da história, não?

Este filme é uma coprodução da França, do Canadá e da República Tcheca.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,3 para esta produção. O site Rotten Tomatoes tem apenas uma crítica para este filme, e ela é positiva.

CONCLUSÃO: Este não é um filme exatamente surpreendente. Especialmente se você já assistiu a várias produções sobre a Segunda Guerra Mundial. Un Sac de Billes pode não trazer muita novidade para esta temática, mas algo temos que dizer sobre este filme: ele é muito bem feito. E atinge os seus objetivos. Para começar, ele se mostra uma competente narrativa sobre a Segunda Guerra através da ótica de pessoas comuns. Depois, o diretor Christian Duguay e o time de roteiristas desta produção acertam no equilíbrio da ação, do drama e da comédia. O espectador é sempre conduzido pela mão em uma montanha-russa de momentos mais “leves” e de tensão. Uma narrativa competente e que fica acima da média pelo talento do elenco. Vale assistir, sem dúvidas.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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