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9 Mois Ferme – 9-Month Stretch – Uma Juíza Sem Juízo


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Algumas vezes é bom dar um tempo nos filmes sérios, existenciais e complexos e se jogar em uma produção “bobinha”. 9 Mois Ferme pode ser classificada nesta última categoria. Não existe, no filme, nenhuma grande reflexão e pouco espaço para a identificação do espectador. Mas há sim um belo trabalho de direção e dos atores. Eles fazem o filme valer o nosso tempo, assim como a história divertida e envolvente – além de inusitada.

A HISTÓRIA: Uma estátua da Justiça vendada e com sua tradicional balança equilibrada. A câmera se afasta. Ao redor daquela estátua, muitos sorrisos, flertes, bebidas e comemoração. É Ano-Novo. A câmera desliza seguindo bandejas, convidados, no compasso da música clássica, até chegar a um punhado de balões. Um deles se desprende e sai voando pela janela, chegando até o local de trabalho da juíza Ariane Felder (Sandrine Kiberlain). Ela narra a própria história, fala de suas convicções e das razões que a fazem não celebrar a virada de ano. Mas acaba cedendo ao apelo de um grupo de festeiros e sai para celebrar, sem saber que aquela noite iria mudar a vida dela para sempre.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a 9 Mois Ferme): Normalmente eu gosto do que o cinema francês nos apresenta. Isso porque, no geral, as produções daquele país primam por histórias bem contadas, muitas delas com tom existencialista – ou seja, que nos fazem pensar sobre as nossas próprias vidas, seja no singular ou no plural. Mas mesmo quando o filme é mais “raso”, como no caso das comédias, a tendência é que encontremos produções de qualidade se a grife é francesa.

E com 9 Mois Ferme a regra segue valendo. Depois de vários filmes de ação e dramas, nada melhor do que mergulhar em uma comédia inteligente e cheia de ironias. Desta vez o ambiente é o do tribunal – aliás, não lembro de ter visto a outro filme tirando tanto sarro deste cenário tão cheio de drama e de suspense como este. E o romance liga duas pessoas que normalmente não veríamos unidas nunca – ou, melhor, apenas em outra posição, a da juíza que condena o criminoso.

Mesmo sendo uma comédia, contudo, 9 Mois Ferme toca em temas muito contemporâneos e interessantes. Para começar, o filme explorar a visão da mulher moderna, independente, que dedica a vida ao trabalho e que “abre mão” dos homens. O roteiro sagaz do diretor e ator Albert Dupontel, que teve a colaboração de Héctor Cabello Reyes e Olivier Demangel para escrever a história deste filme, também explora a realidade dos tribunais, que são vistos sem pompa ou circunstância, e também a cada vez mais frequente desestruturação das famílias.

Os dois protagonistas desta produção são frutos de lares desfeitos. Isso é o que une a juíza Ariane e o bandido Bob Nolan (o diretor e roteirista Albert Dupontel). Mas esta característica, segundo a própria Ariane, se espalhou mais que capim em terreno fértil e não cuidado. Vide os vários casos que ela atende das varas da família. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Por ironia completa, é justamente o protótipo de uma nova família o que acaba aproximando Ariane e Bob. Algo que não foi nem um pouco planejado e ideia que a protagonista combate por um bom período.

Ariane exemplifica o perfil de muitas mulheres de sucesso da atualidade. Ela tem 40 anos e se dedica totalmente ao trabalho, abrindo mão de relacionar-se com homens (e mulheres), sem sentir necessidade de ter uma vida sexual ativa, conseguindo prazer em outras atividades – como a dança. O mesmo se vê em várias partes – com a busca do prazer variando entre sair com os amigos e beber, dançar ou praticar um esporte atrás de adrenalina e endorfina.

Mas para ela basta uma noite de “loucuras” para que este “modelo perfeito” de vida controlada seja testado. Ela fica grávida, e não tem a menor ideia de quem. Fazendo os cálculos, ela descobre que engravidou na virada do ano. Primeiro, desconfia do colega De Bernard (Philippe Uchan), sujeito sem noção e bastante debochado – e que parece flertar com ela mais que o normal nos últimos meses.

Ela confronta o provável “culpado” de sua gravidez. Procura confirmar a suspeita fazendo um teste de DNA. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). E é aí que ela fica sabendo da existência de Bob Nolan. Ele é acusado de um assalto que terminou quase em homicídio, um crime com requintes de crueldade. Como ele está preso, não é difícil para a juíza conseguir um “depoimento” do possível pai de seu filho. Ao saber pelo advogado gago Trolos (Nicolas Marié) que Ariane é uma juíza temida e muito inteligente, o nada esperto Bob dá um jeito de procurar a ajuda da magistrada, sem ao menos sonhar que eles já estão ligados por causa do Ano-Novo.

A narrativa de 9 Mois Ferme é veloz e envolvente. Não há espaço para bocejos ou para o tédio. O roteiro do filme faz rir sem apelações, ainda que escolha a via do exagero e da exploração dos estereótipos. Sabemos o que esperar de quase todos os personagens porque eles são apresentados de forma direta e honesta. Como pede uma boa comédia, não há viradas surpreendentes em 9 Mois Ferme, apenas uma narrativa que fica mais profunda conforme os personagens vão reagindo ao que acontece ao seu redor.

Em alguns momentos este filme me fez lembrar outras produções interessantes como Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain e Lola Rennt. Em que sentido? Especialmente na narrativa rápida, concisa e inventiva (características de Lola Rennt), assim como na realidade fantasiada e na “reconstituição” de cenas passadas e/ou imaginadas que caracteriza Amélie Poulain. Estes elementos são bem utilizados por 9 Mois Ferme, com destaque para a direção inspirada de Dupontel e o roteiro bem escrito por ele e seus colaboradores.

Como acontece com tantas pessoas na vida real, uma noite de “destempero” de Ariane é o suficiente para mudar a vida da personagem. Mas isso só acontece de fato porque ela revê as próprias certezas e tem, para isso, uma ajudinha de Bob Nolan. Ele é fundamental não apenas na noite do Ano-Novo, mas também na intervenção que salva o filho da juíza quando ela, desesperada, tenta provocar um aborto ao atirar-se de uma altura considerável na sala de casa.

Há quem possa ver neste filme várias cenas exageradas – essa última, da tentativa de aborto, é uma delas. Mas sem exagero, o que seria feito das comédias? Esse gênero investe no escracho e no exagero de forma consciente. E cá entre nós, a vida mesma é feita de vários momentos assim. Então relaxe e aproveite este filme, ou pense nele como um bom passatempo. Além de ser envolvente e engraçado, 9 Mois Ferme nos fala sobre a nossa própria capacidade de reinvenção.

Algumas vezes, quando estamos distraídos e/ou resolvemos quebrar um pouco as nossas certezas bem sólidas, o inesperado pode acontecer e nos trazer presentes muito bacanas, como o amor e uma nova forma de encarar a vida. Sem tantas regras e sisudez, de uma maneira muito mais leve. Como este filme.

NOTA: 9.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Os atores escalados para fazer este filme estão ótimos. Todos. Mas com destaque especial para aqueles que dão vida para os protagonistas. Fiquei impressionada com a consistência de Albert Dupontel e Sandrine Kiberlain. Seja juntos ou separados, eles convencem em seus papéis e apresentam grande sintonia.

Falando em atores, vale citar uma ponta de primeira grandeza: o ator Jean Dujardin aparece como o tradutor para a língua de sinais de diversas matérias televisivas que apresentam o caso do bandido Bob Nolan. Quando o vi em cena, quase não acreditei. Mais uma razão para sorrir durante este filme.

9 Mois Ferme me chamou a atenção para o trabalho de Albert Dupontel. Não apenas porque ele estrela a produção, mas também porque atua aqui como diretor e roteirista. Fui procurar mais informações sobre ele e vi que Dupontel tem nada menos que 42 trabalhos como ator – incluindo filmes e séries para a TV – e mais seis como diretor e roteirista. Todos os filmes que ele dirigiu, desde o curta Désiré, de 1992, até este 9 Mois Ferme foram escritos por ele. Eis um nome interessante e que merece ser acompanhado.

Este filme tem várias sequências interessante. Mas uma das melhores, para mim, foi aquela da dobradinha feita pela protagonista vivida por Sandrine Kiberlain e o ator Bouli Lanners – que interpreta o policial que ajuda ela a resgatar imagens de diversas câmeras que filmaram a saída da festa de Ano-Novo. Genial a forma com que o diretor/roteirista constrói aquela busca desesperada e também a sintonia entre os atores em cena. Impossível não rir das ironias ditas por Lanners.

9 Mois Ferme estreou no Festival de Cinema Francês de Angoulême em agosto de 2013. Depois, o filme participaria ainda de outros quatro festivais – o mais conhecido deles foi o de San Sebastián. Nesta trajetória, a produção ganhou dois prêmios e foi indicada a outros nove. Os dois prêmios recebidos foram relevantes: Melhor Atriz para Sandrine Kiberlain e Melhor Roteiro Original no César, maior prêmio do cinema francês. Merecidos.

Para quem gosta de saber sobre as locações dos filmes, 9 Mois Ferme foi totalmente rodado em Paris, com cenas no Palais de Justice e na Place Dauphine – dois dos variados pontos turísticos da Cidade Luz.

Da parte técnica do filme, vale destacar a direção de fotografia de Vincent Mathias, a ótima edição de Christophe Pinel e a trilha sonora envolvente de Christophe Julien.

Os usuários do site IMDb deram a nota 6,8 para 9 Mois Ferme. Uma boa avaliação, levando em conta o padrão do site e o tipo do filme.

CONCLUSÃO: Pegue uma história inusitada e carregada de humor, junte uma ótima direção e atores competentes e você terá um filme divertido e que vai passar rápido. Este é o caso de 9 Mois Ferme, que narra a inesperada ligação entre uma juíza e um arrombador/assaltante. Mesmo sendo uma comédia que investe no exagero, como bem pede o gênero, este filme tem algumas ponderações interessantes, como que a herança que recebemos de nossos pais pode ser revista no futuro – e a vida pode nos trazer revisões interessantes de certezas há muito solidificadas. Divertido, ágil e com a duração certa, 9 Mois Ferme se revela um entretenimento interessante e competente.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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