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Tár


Um filme sobre música, poder, auge e queda. Tár é uma história interessante, com algumas camadas, e que vai se desenvolvendo como uma composição clássica que tem diversos altos e baixos. Há um bocado de drama em cena, uma certa dose de suspense, de tensão e algumas reflexões pelo caminho. Alguns tópicos levantados por Tár são bem pertinentes, enquanto algumas escolhas dos realizadores podem ser debatidas de forma positiva ou negativa.

A HISTÓRIA

Começa com uma transmissão feita pelo celular ao vivo. Na imagem, vemos uma mulher dormindo sentada no banco de um avião. Na troca de mensagens, feita pela transmissão, uma pessoa pergunta em que horário Lydia Tár (Cate Blanchett) acordou. Quem está fazendo a transmissão diz que não estava com ela quando Tár acordou. A outra pessoa comenta que ela é “madrugadora”. Quem faz a transmissão contesta: “assombrada”. Sua interlocutora pergunta se ela está querendo dizer que Tár “tem uma consciência”. A outra pessoa responde: “talvez”. Quem está vendo a cena à distância pergunta se a pessoa ainda ama Tár, então. Corta.

Ouvimos alguém perguntando se uma pessoa está pronta. Em seguida, vem o pedido para que o microfone seja ignorado. Ela pede para que sua interlocutora apenas cante como se o microfone não estivesse ali. Ouvimos um canto diferente. Enquanto ouvimos alguns cantos, vemos uma sequência de créditos, como se tivéssemos chegado ao final do filme. Em seguida, vemos Tár nos bastidores de um palco. Em breve, vamos mergulhar na sua história e na sua vida em uma fase decisiva.

VOLTANDO À CRÍTICA

(SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Tár): Eis um filme interessante. Ele parece óbvio, com uma narrativa linear, mas só depois de assistir toda a produção é que percebemos que não é bem assim. Aquele início “estranho”, no qual parece que estamos vendo os créditos finais do filme, tem um sentido de ser.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Só depois de terminar Tár é que aquele começo faz sentido. A cena que vemos no avião, a transmissão feita ao vivo, faz parte da reta final da produção. O que estamos vendo ali é uma repetição do que vamos ver quase duas horas depois. Quem está filmando Tár é sua pupila Olga Metkina (Sophie Kauer). Isso já na fase final da derrocada da compositora e regente.

Assim, também podemos concluir que a voz que ouvimos, mesmo não vendo as cenas, apenas tudo preto, é a de Tár, orientando seus novos discípulos, agora em um país totalmente diferente e distante. Os créditos que aparecem em seguida, é como se sinalizassem o fim daquela história. Só depois “voltamos no tempo” e entendemos o contexto sobre aquelas cenas e sons que acabamos de ouvir.

Essa é uma das ousadias do diretor e roteirista Todd Field. Algo que nos causa estranheza, claro, porque não estamos acostumados a ter a lógica narrativa e de sequência de elementos de um filme alterados desta forma. Mas vencidos aqueles créditos iniciais – que parecem finais, e não deixam de ser, só que deslocados de “local” na edição -, mergulhamos em uma história fascinante e com duas grandes temáticas.

Logo após aqueles créditos, vemos Tár nos bastidores com alguns de seus trejeitos. Ali já temos uma pílula do que iremos ver como um dos grandes trabalhos de interpretação da gigante Cate Blanchett – uma das minhas atrizes preferidas desde sempre. Em seguida, aparece em cena outra personagem importante nesta história, a “secretária”/assistente de Tár, aspirante a regente, Francesca Lentini (Noémie Merlant). Ela sabe tudo que Tár precisa, a cada momento, todos seus gostos e manias.

Francesca conhece Tár quase como ninguém. Além de saber tudo que ela vai pedir antes que ela peça, ela também opina sobre algumas decisões da regente e conhece os seus padrões de comportamento. Percebe quando ela pode estar se interessando por alguma garota – seja ela uma admiradora ou uma musicista. A interpretação de Noémie Merlant é precisa, nos deixando sempre em dúvida sobre até que ponto sua personagem admira Tár ou em que momento ela está apenas esperando pela próxima puxada de tapete ou problema acontecer.

Essa “desconfiança” que aparece em cena, desde o início, nos deixa com aquela salutar “pulga atrás da orelha” durante grande parte da produção. Afinal, essa mulher que é tão admirada, tão dominante em cada ambiente, está escondendo o que? Que pecados a gente ainda vai descobrir? O mal estar aparece velado em diversos momentos, e isso apenas atrai nossa atenção – assim como as interpretações das atrizes, especialmente de Cate Blanchett, é claro, já que o filme é “carregado” por ela.

Interessante como o filme, da forma como ele foi construído, parece também uma composição clássica. Tár começa de forma lenta, introdutória – literalmente, com o currículo da protagonista sendo lida por Adam Gopnik, que entrevista a “maestro” para uma reportagem da The New Yorker, em uma seção gravada em um teatro com uma plateia -, depois evoluindo com sua narrativa até ir crescendo com sua “composição”, intercalando, lá pelas tantas, momentos de suavidade, de certo lirismo, até, com momentos de tensão e de drama.

O filme, claro, é focado na história da protagonista – por isso comentei que Cate Blanchett “carrega” a produção nas costas. Ela é cercada por outras atrizes e atores competentes, mas como o roteiro é focado claramente na história da sua personagem, ela é quem domina a tela do início ao fim. Então acompanhamos essa compositora e regente, chamada de “maestro” em diversos momentos do filme, no auge de sua carreira, perto de completar um marco importante, que é chegar até o final do ciclo de gravações da obra Mahler com a Orquestra de Berlim.

A entrevista que inicia a narrativa linear de Tár está ambientada um mês antes dela gravar a Sinfonia n.5 de Mahler com a orquestra. Este momento decisivo na carreira dela é o que veremos em cena. Mas o que acontece naquele mês? Tudo. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Ao mesmo tempo em que acompanhamos Tár ensaiando com a orquestra a sinfonia decisiva, ela decide mudar seu assistente principal, o que cria uma crise importante; uma antiga pupila dela se mata e começam a surgir desconfianças sobre a relação de Tár com essa antiga pupila e outras garotas; o casamento dela parece estar vivendo uma fase “morna”, para dizer o mínimo; e uma nova garota surge em cena para “complicar” tudo.

Bem, esse é um resumo do que acontece naquele mês decisivo… não fui totalmente precisa, até para não “estragar” surpresas – ainda que sempre faço esses alertas de “spoiler’s”. Mas o que interessa mesmo, quando falamos desse filme, é abordarmos suas duas temáticas centrais. Vejamos. Para mim, os dois temas principais de Tár são: os efeitos daninhos que a “genialidade” e o poder que essa genialidade traz para uma pessoa podem causar para quem chega perto de quem chega neste patamar; e a política do cancelamento tão disseminada nos nossos dias.

Vamos falar um pouco sobre estes dois temas centrais. Lydia Tár é uma mulher excepcional. Ela fez uma carreira brilhante, tem um olhar diferenciado para a música, é talentosa e chegou a lugares em que poucas mulheres chegaram antes. Para muitos, ela é genial. Mas, como quase todo o gênio que já tivemos na história da Humanidade – seja ele mulher, seja ele homem -, ela apresenta uma certa tendência a “patrolar”.

O que eu quero dizer com isso? Que geralmente as pessoas “geniais” ganham um nível tal de projeção e de poder que elas perdem o contato com o que é razoável e viram verdadeiras patrolas. Ou seja, elas passam por cima de qualquer pessoa ou de qualquer situação para conseguirem o que querem e satisfazerem seus desejos.

Geralmente isso acontece com homens em posições de poder. São raros os sujeitos com grande poder que não são uns cretinos. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Nesse sentido, chega a ser até comum vermos homens com grande poder que são abusadores – vimos isso em Hollywood, vimos isso no Brasil entre grandes empresários ou herdeiros de famílias ricas. O diferente de Tár é que essa posição de poder e de abuso é exercido por uma mulher.

Nesse sentido, o filme trabalha uma outra questão: como alguns lugares seguem sendo predominantemente ocupados por homens. Este é o caso da regência de orquestras. Segundo nos conta Tár, poucas mulheres ocupam posições de liderança como a protagonista do filme. Chega a ser estranho como diversas pessoas a chamam de “maestro” – quando o correto seria maestrina. É como se aquela posição pudesse ser ocupada somente por homens – e mesmo quando é ocupada por uma mulher, a palavra não muda, não se adapta.

O que me incomodou um pouco neste filme, para falar a verdade, foi justamente colocar uma mulher na posição de abusadora. Com isso, não quero dizer que uma mulher não possa sofrer com a síndrome do “poder que sobe à cabeça” e virar uma abusadora, alguém que usa o poder para conquistar e depois subjugar a pessoa que se rebela, chegando ao ponto de fechar todas as portas para que o novo desafeto não consiga fazer sua carreira em lugar nenhum – que é o que Tár faz com Krista Taylor (Sylvia Flote), conforme conseguimos ver em algumas trocas de e-mails.

Mulheres podem ser abusadoras sim. E acho que o filme torna o debate interessante ao mostrar como algumas mulheres, ao ocupar posições de poder tradicionalmente masculinas, podem simplesmente seguir aqueles padrões de superioridade e de abuso de poder. Ok, isso é possível. Mas realmente não pode ser entendido errado termos uma mulher lésbica nessa posição? Caso um dos propósitos de Todd Field fosse debater aquele ambiente tradicionalmente machista e de relações de poder, ocupado desta vez por uma mulher, não poderia ser mais interessante essa mulher exercer seu poder além do limite e ter atitudes abusivas contra músicos, maestros e assistentes homens? Ou homens não poderiam ter as portas fechadas até um certo nível que os levasse ao desespero e ao suicídio?

Claro que não é absurda a construção da personagem e da narrativa feita por Todd Field. Sim, podemos acreditar no que vemos em cena. Ao ponto de acharmos que Tár é baseado em uma história real. Mas o que me incomoda um pouco na construção da personagem é que eu acho que o filme pode ajudar a aumentar ainda mais o estigma de mulheres lésbicas em posições de poder. Como se elas não pudessem estar nessas posições sem emular completamente o comportamento dos homens machistas.

Enfim, não vou entrar muito nesse debate. Claro que eu acho interessante o realizador ter escolhido uma mulher como protagonista desde o início – e ter pensado no roteiro de Tár para Cate Blanchett em específico. Mas… acho que as outras possibilidades também seriam interessantes e nos levariam a um favorecimento menor dos estigmas envolvendo lésbicas. Poderíamos sim ter uma maestrina como protagonista, mas abusadores de homens, ou um homem como abusador de mulheres – este último caso, bem mais comum, temos que convir.

Mas a ideia central, no fim das contas, é o que mais nos interessa. Tár nos conta a história de uma pessoa genial, acima da média, que estraga sua vida ao deixar o sucesso e o poder subirem à cabeça. Prestigiada, admirada, sabendo de seu talento, Tár extrapola todas as fronteiras do bom senso ao usar sua posição de poder para seduzir e explorar jovens talentos.

Em uma cena importante do filme, a própria esposa da protagonista, Sharon Goodnow (Nina Hoss), sugere que Tár só consegue se relacionar com as pessoas para tirar algo em troca – e que apenas a filha delas, Petra (Mila Bogojevic), não seria explorada desta forma, não seria uma relação “transacional”. Complicado alguém que só enxerga os outros desta forma, não? Do que, afinal, as pessoas podem lhe dar em troca? Mas quantas pessoas conhecemos – ou já passaram na nossa vida – que tem (ou tiveram) essa conduta? Tenho certeza que se você refletir a respeito disso, vai encontrar alguns nomes…

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Há um ponto decisivo na história de Tár: quando Krista Taylor, sua antiga pupila e, claramente, uma das suas amantes, explorada pela maestrina, finalmente cumpre as ameaças que fazia há tempos e se mata. Este é um momento decisivo porque torna a relação de Tár com sua ajudante e a pessoa que mais sabia sobre tudo que acontecia com a maestrina, Francesca, ainda mais complicada. Elas ficam por um fio.

Muito autocentrada, Tár não percebe esse momento decisivo. Ela não gosta de ser contrariada, e ao ter um ponto de sua condução questionada – na verdade, Sebastian Brix (Allan Corduner) faz uma pequena observação com o qual ela não concorda -, Tár decide substituir seu regente assistente. Neste momento, ela erra miseravelmente. Pressionada por homens – claro, ela está cercada por homens em posições de poder ou de influência sobre ela -, Tár acaba não escolhendo Francesca para a posição.

Ora, Francesca estava acompanhando tudo de perto há muitos anos. Só “engolia” alguns absurdos pela perspectiva de subir um degrau na carreira e tornar-se regente assistente da maestrina para a qual ela fazia todas as vontades. Francesca já estava na corda bamba quando veio a notícia da morte de Krista. Ela ter sido preterida para o cargo vago foi apenas a gota d’água que faltava. Antes, ela já fica bem incomodada ao identificar a “próxima vítima” de Tár, a violoncelista Olga Metkina. Falarei sobre esta questão logo abaixo.

O filme não deixa claro, mas fica bem subentendido, que Francesca foi uma peça fundamental para a derrocada de Tár a partir daquele ponto. Ela parece ter feito um acordo com a promotoria, passando informações para eles, tanto que o representante do promotor entrevista Tár e adianta para ela que a maestrina terá que dar um depoimento. Quando vai atrás de Francesca, ela já se mandou. Tár fica furiosa, mas a roda já está girando para destruir a reputação dela. A partir daí, é só ladeira abaixo.

Antes, vale citar questões importantes do filme. Naquele mês derradeiro, quando Tár começa a se preparar para fechar um ciclo importante à frente da conceituada Orquestra de Berlim, ela começa a dormir mal. Por algum tempo, pensamos que pode ser por causa do estresse e do alto nível de cobrança que ela mesma deve estar fazendo sobre seu trabalho. Mas, depois, quando a história de Krista e de Francesca começa a ficar mais clara, percebemos que ela está sendo assombrada por seus próprios erros. A cena dela sendo “perseguida” por um cão bravo, naquele local estranho em que Olga entra e no qual ela dizia morar, parece mais um efeito dessas alucinações que ela parecia estar passando – ficar sem dormir direito tantos dias pode levar uma pessoa a ver o que, de fato, não existe.

Quando Tár avança no caminho da derrocada e chega a ser questionada pelo conselho da Orquestra de Berlim, após notícia sobre o caso Krista ganhar projeção, a maestrina comenta que vai viajar para Nova York para o lançamento de seu livro. Só então as peças do quebra-cabeça se encaixam. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Nessa viagem, seguindo em sua linha de uma pessoa sem limites e sem noção, ela acaba levando Olga. Claramente em uma tentativa de seduzir a jovem música. E é nesse ponto que descobrimos que Olga sempre foi aliada de Francesca.

Quando Tár viaja para Nova York, percebemos que as cenas transmitidas ao vivo no início do filme foram feitas por Olga, que viaja com ela no mesmo jatinho. Depois, quando ela está lendo parte do livro no lançamento que faz para uma plateia selecionada, Olga volta a transmitir ao vivo o evento. A troca de mensagens, novamente, é sugestiva. A pessoa com a qual ela se comunica pergunta como Tár está se saindo. Olga responde que ela está “trotando” para fora parte de sua “divindade”. Fala com alta carga de ironia, claro.

Isso fica ainda mais claro com a frase seguinte de Olga, no qual ela ironiza se Tár usar alegoria. Essas trocas de mensagens, assim como aquelas primeiras, transmitidas do avião, não parecem ter sido feitas com uma pessoa aleatória. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Se observarmos também a primeira vez em que Tár vê Olga, quando a musicista entra de forma “intempestiva” no banheiro, o que acontece no momento anterior? Francesca está na porta e está trocando mensagens com algo. Não sei, posso estar errada, mas para mim fica bem subentendido que Olga foi “plantada” por Francesca, que já pensava em inverter a ação e fisgar Tár na direção de uma emboscada.

Claro, naquele momento, Krista ainda não tinha se matado. Francesca não sabia como ajudar a amiga, ex-companheira de “intimidades” com a maestrina, mas parecia estar preparando a “cama de gato” para Tár. Essa é a leitura que eu faço daquelas cenas e das trocas de mensagens. Mas pode ser que eu esteja errada e que Olga estava apenas tirando sarro de Tár com outra pessoa, alguém aleatório que conhecia a reputação da maestrina mas que não era tão próxima dela quanto Francesca.

De qualquer forma, Tár vai muito além do razoável. Ela realmente usa as pessoas e “joga fora” quando elas não servem mais ou viram uma “ameaça” – como Krista, que passou a “fazer exigências”. Exposta pelas denúncias dos pais da garota morta e a partir de algumas investigações jornalísticas, Tár cai em desgraça. Não apenas perde a regência da última peça de Mahler, algo importante para sua carreira, como passa a ter diversas portas fechadas. Daí entramos no outro tema importante deste filme – eu diria que ele é a espinha dorsal da produção.

(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). A tal cultura do cancelamento, tão presente nos nossos dias. Interessante que esse tema aparece logo na fase inicial da produção, em um debate aparentemente normal em sala de aula. Tár está dando aula para um grupo pequeno de alunos da conceituada Juilliard, quando ela começa a fazer diversas perguntas para Max (Zethphan D. Smith-Gneist).

Ela começa perguntando porque ele escolheu a Escola Juilliard para estudar, se era por causa da “marca”, da “grife” do local. Depois, a aula prossegue, assim como as perguntas, até que Max diz que não gosta muito de Bach. Puxa vida, um dos maiores gênios da história da música e Max diz que não gosta dele… como Tár é uma especialista em Bach, aquela afirmação cai como uma bomba nos ouvidos dela.

Eles seguem dialogando, com Tár fazendo cada vez mais perguntas para Max para tentar entender seu ponto de vista. Então descobrimos que Max não gosta de Bach porque ele teria tido uma vida misógina… e ele, como um rapaz negro e pansexual, não poderia gostar do compositor por causa disso. Tár pergunta se Max já tinha conduzido alguma obra de Bach, no que o estudante diz que não. E aí entramos em um tema fundamental do filme e que depois será explorado de outra forma.

Para mim, eis a essência de Tár: como o filme questiona e reflete a cultura do cancelamento. Realmente um gênio como Bach pode ser ignorado, especialmente por quem quer viver da música, por causa da sua forma de pensar e da sua vida pessoal? Jovens altamente críticos da atualidade podem usar os mesmos critérios evolutivos que temos hoje para analisar todo o passado da Humanidade? Não, acho que não.

Com todo o respeito aos jovens, que naturalmente tem um espírito contestador – eu já fui jovem também e sei bem com é isso -, mas vejo muita gente que não fez muita coisa na vida ainda, que não passou por diversos desafios e problemas, tendo muita pressa de julgar com bastante rigidez tudo e todos que vieram antes. Seja a Bíblia, seja qualquer outra obra que tenha sido criada há décadas, séculos atrás, deve ser entendida em seu contexto, com todas as nuances que fizeram parte daquela época.

Claro que ninguém apoia comportamentos misóginos, machistas, racistas, homofóbicos e toda uma grande relação que signifique a exclusão de uma pessoa ou de um grupo. Mas será que a postura de Max, que representa todos os jovens “modernetes” de identidade fluída (vide Baumann), de excluir a obra de um gênio por causa de sua vida pessoal não está também reproduzindo preconceitos e, ironicamente, reafirmando exclusões?

Será, também, que devemos analisar a obra das pessoas, seja Bach, seja Tár, de forma descolada de suas vidas pessoais? Daí entramos na questão fundamental do filme. Afinal, a cultura do cancelamento será vivenciada por Tár posteriormente na narrativa. Particularmente, eu não acho que a obra das pessoas deve ser ignorada, incinerada ou esquecida porque na vida pessoal estes artistas cometeram crimes. Idem para cientistas, filósofos e todas as demais pessoas que contribuem de alguma forma para o avanço da Humanidade.

Mesmo não achando que a obra destas pessoas deve ser jogada no lixo por causa de seus erros na vida pessoal, claro que não dá para ignorar o que elas fazem ou fizeram. Mas acho que seríamos um pouco mais sábios e justos se conseguíssemos separar vida profissional de vida pessoal e dar o devido peso para cada ato, para cada falha, para cada crime.

Existem esferas específicas para as pessoas responderem por seus erros. Se cometeram crimes, devem responder por isso. Mas será que uma pessoa merece ser condenada em todas as instâncias e até o final da vida pelos crimes que ela cometeu ou ela deve ter uma dose justa de cobrança, para pagar pelo erro de uma forma que a sociedade ache justa, e depois ter a chance de ter uma certa “redenção”?

A cultura do cancelamento, me parece, procura anular a pessoa para sempre. Não apenas enquanto ela viver mas, se possível, ao menos segundo a ótica de Max, para toda a eternidade, para a posteridade. Alguém que tem uma falha de caráter, que comete um crime, deve ser apagado para sempre, não importa o que a pessoa tenha feito de bom, o quanto ela possa ter contribuído para a sociedade ou até para a evolução de uma área do conhecimento ou para a arte. Isso não parece um pouco pesado demais? Um tanto desproporcional?

Me preocupa muito a cultura do cancelamento, assim como uma sociedade extremamente punitivista. Tenho lido e ouvido podcasts sobre estes temas e refletido bastante a respeito. Tár, neste sentido, vem acrescentar mais algumas gramas de reflexão no que eu já vinha pensando sobre estes temas. Acho sim que as pessoas, mesmo as mais geniais e especialmente aquelas que estão em posições de poder, devem pagar por seus erros. Mas também acho que essa punição deve ser proporcional à falha, que deve buscar a reparação do erro e não a aniquilação de quem cometeu um crime. O que vemos acontecer com Tár é uma exclusão que dói.

(SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Sim, Tár foi uma abusadora, causou danos a muitas pessoas e levou estes erros ao extremo ao agir com crueldade com uma de suas vítimas fechando todas as portas para ela e levando-a ao desespero. Ela deve pagar por seus crimes. Mas o quanto a música estará perdendo com a exclusão dela de todos os locais importantes para o desenvolvimento desta área e de novos talentos? Nunca saberemos.

Primeiro, a instituição que apoia Tár tira o patrocínio. Depois, a orquestra que ela comanda, tira ela de cena bem perto da data do grande concerto. Será mesmo que não haveria outra alternativa para aquele “massacre”? Concordo que sem nenhuma punição, Tár não poderia ficar. Sim, ela representava um certo risco para jovens musicistas e para outras pessoas que poderiam sofrer com seus assédios e desmandos. Mas não seria mais eficaz, enquanto ela respondia a um processo criminal, colocar limites em suas ações e ter até um comitê acompanhando seus atos?

O sistema em que ela estava, até então, colocou muito poder em uma única pessoa. Esse parecia ser o “custo” da genialidade. Afinal, os gênios devem conseguir tudo que eles desejam para que sigam atraindo atenção e vendendo ingressos. Será mesmo? Será que o contexto em que Tár estava não tinha certa responsabilidade sobre o seu descontrole? Será que estamos preparados para discutir os ambientes permissivos e que dão poder excessivo para certas pessoas ou é mais fácil apontar todos os dedos para quem extrapola certas fronteiras (que não deveriam ser ultrapassadas) e eliminar essa pessoa do cenário público sem culpa?

Enfim, acho que este filme trata sobre diversos temas importantes e muito, muito atuais. Inclusive, essa pressa dos “jovens” em ignorar quase tudo que foi feito antes, como se eles estivessem inventando a roda neste momento. Certo, bacana ser rebelde e ser inovador. Mas um pouco de respeito e ao menos de interesse pelo que veio antes faria bem para esses jovens e para todos nós, já que esta galera será “nosso futuro”. Andaremos para trás, e com passos largos, se seguirmos medindo os outros e a realidade a partir de critérios particulares e, algumas vezes, bastante superficiais.

NOTA

9,2.

OBS DE PÉ DE PÁGINA

Minha gente, falei demais sobre Tár, não é mesmo? Prometi, há algum tempo, escrever críticas mais curtas por aqui… mas tem filmes, como esse Tár, que me obrigam, praticamente, a escrever muito. É que são tantos temas, tantas nuances, tantas questões que acho que precisamos abordar… e isso porque eu abordo os temas sempre de forma sucinta, sem me aprofundar muito. Imaginem se eu me aprofundasse…

Acho que essa crítica, um tanto longa demais, combina bem com o filme… que também é um bocado longo. No total, incluindo todos os créditos do filme, Tár tem 2h38 de duração… convenhamos que ele é longo, acima da média do mercado. Mas, fora aqueles “créditos invertidos” iniciais e uma ou outra fala da produção, especialmente quando Tár conversa com Andris Davis (Julian Glover), antigo maestro da Orquestra de Berlim, na maior parte do filme nem percebemos o tempo passar. Ainda que esta produção tenha muitas, muitas linhas de diálogo, o filme transcorre com um ritmo interessante e crescente. Achei a narrativa bem envolvente.

Claro que algumas das principais qualidades – e alguns dos principais defeitos – de Tár tem a ver com as escolhas do diretor e roteirista Todd Field. Ele acerta na maior parte das escolhas, mas acho que alguns maneirismos – como a sugestão de que Tár poderia estar enlouquecendo, em algumas cenas, ou, ao menos, sendo “assombrada” por suas lembranças/consciência – e algumas escolhas centrais do diretor e roteirista, como a escolha do perfil da protagonista, o que pode estigmatizar ainda mais mulheres lésbicas em posição de poder, são os pontos frágeis da produção.

Todd Field, nascido em 1964 em Pomona, cidade da Califórnia, nos Estados Unidos, tem 12 filmes no currículo como diretor. Quem lembra dele há alguns anos, quando Field parecia ser um dos nomes mais badalados de Hollywood, poderia pensar que ele dirigiu mais produções que isso. Mas não. Field não é muuuuuito produtivo, digamos assim. Ele estreou em 1992 com o curta Too Romantic e lançou outros seis curtas antes de dirigir um episódio da série de TV Once and Again, em 1999. Dois anos depois, ele estreou na direção de um longa, o badalado – e bastante elogiado – In the Bedroom, indicado em cinco categorias do Oscar. Depois, veio Little Children, em 2006, indicado em três categorias do Oscar. E aí, passaram-se mais seis anos até Tár.

Além do roteiro e da direção de Todd Field, o destaque principal de Tár, sem dúvida alguma, é a interpretação de Cate Blanchett para a protagonista. Mais um trabalho primoroso da atriz, que se entrega 100% ao papel que interpreta mais uma vez. Sou suspeita para falar de Cate Blanchett. Acho ela perfeita. Para mim, a exemplo de Meryl Streep, ela está geralmente alguns degraus acima das demais atrizes. Geralmente, acho que as duas merecem todos os Oscars possíveis. Hahahahaha. Como isso não é possível, claro que elas dividem os prêmios com outras atrizes. Então sim, Cate Blanchett merece o Oscar por esse papel. Mas não é certo que ela levará a estatueta dourada para casa (comento sobre isso mais abaixo).

Minha gente, a correria está grande. Então vou publicar esse texto por aqui sem terminar esta seção, beleza? Mas logo que quer, eu volto por aqui para complementar esta parte com as informações de costume. 😉

Voltei! Bóra lá terminar essas “OBS de pé de página”. Voltando sobre os pontos de destaque de Tár. Como eu disse, chama muito a atenção no filme a direção e o roteiro de Todd Field, assim como a interpretação impecável e irretocável de Cate Blanchett. Ela está maravilhosa. Ao lado dela, temos outras atrizes com um trabalho bem interessante. Neste sentido, destaque para Noémie Merlant, que interpreta Francesca Lentini, a assistente e braço direito de Tár; Nina Hoss como Sharon Goodnow, uma das músicas da Orquestra de Berlim e esposa da protagonista; Mila Bogojevic como Petra, uma garota sensível, filha de Tár e de Sharon, e que parece estar sofrendo com a tensão que deixa o ar da casa da família mais pesado; e Sophie Kauer como Olga Metkina, a jovem violoncelista que vira o novo alvo da atração de Tár e que parece um bocado ambiciosa – e irônica em relação à “superioridade” da maestrina.

Os nomes acima, a meu ver, são os principais da produção. Todos, observem bem, de mulheres. Elas são as protagonistas do filme. Mas, além delas, temos alguns atores que também ganham certo destaque na produção como coadjuvantes. Neste sentido, vale citar Mark Strong como Eliot Kaplan, maestro e porta-voz da fundação Kaplan, em uma caracterização um tanto estranha, mas o que não impede dele fazer bem seu papel – um tanto xarope, mas é algo do personagem mesmo; Zethphan D. Smith-Gneist como Max, o aluno que tira Tár do sério e que acaba abandonando a aula indignado – de forma um tanto exagerada, mas ok, bem típico “desta geração”, me parece; Allan Corduner como Sebastian Brix, maestro assistente de Tár, veterano da orquestra, e que acaba sendo dispensado por ela; e o veterano Julian Glover como Andris Davis, maestro aposentado da orquestra com quem Tár mantém uma relação próxima e para quem ela busca sempre algum tipo de conselho.

Tár foi estruturado para Cate Blanchett brilhar. Mas, pela lista acima, de atrizes e de atores, dá para perceber que existem vários personagens que complementam a história e que orbitam ao redor da protagonista. Os nomes acima, são os principais, em termos de coadjuvantes. Mas, além deles, vale citar outros nomes que aparecem pouco, mas que tem importância na narrativa: Sylvia Flote aparece de forma muito pontual como Krista Taylor, a garota que é desprezada e tem as portas fechadas por Tár, levando-a a uma medida extrema e triste; Sydney Lemmon faz uma ponta como Whitney Reese, pessoa que conversa com Tár logo após a entrevista que ela dá para o The New Yorker, em um exemplo de uma conversa com uma boa dose de flerte, algo bem típico de Tár com mulheres jovens e bonitas; e Fabian Dirr como Knut Braun, músico que atua como líder dos musicistas da orquestra.

Entre os aspectos técnicos da produção, vale destacar a direção de Todd Field, que apresenta um bom ritmo e proximidade com os atores – especialmente com Cate Blanchett -, além de uma preocupação constante com a beleza de diversas cenas. Neste sentido, contribui muito para a produção a direção de fotografia de Florian Hoffmeister. Há cenas e sequências realmente incríveis em Tár. Trabalho primoroso.

Vale citar também a ótima edição de Monika Willi e, claro, a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir. Não preciso nem dizer que a música é um elemento fundamental deste filme, não é mesmo? Isso vale para os momentos em que a protagonista está ensaiando com a orquestra e vale para todos os outros momentos em que a trilha sonora de Hildur é um ponto importante da narrativa, ajudando a dar o tom de momentos dramáticos, tensos ou de suspense.

Além dos aspectos técnicos citados anteriormente, os de maior destaque em Tár, vale citar alguns outros elementos, como o design de produção de Marco Bittner Rosser; a direção de arte de Steffen Geitner, Patrick Herzberg, Suchartanun ‘Kai’ Kuladee e Petra Ringleb; a decoração de set de Ernestine Hipper; os figurinos bem interessantes de Bina Daigeler; a equipe de 15 profissionais envolvidos com o Departamento de Maquiagem e a equipe de 18 músicos e demais profissionais responsáveis pelo Departamento de Música.

Tár estreou em setembro de 2022 no Festival de Cinema de Veneza. Até março de 2023, o filme participaria, ainda, de 11 festivais e mostras de cinema em diversos países, incluindo os festivais de Telluride, Nova York, Mill Valley, Adelaide e Berlim.

Em sua trajetória, até o momento, Tár ganhou 66 prêmios e foi indicado a outros 244 prêmios – números impressionantes. O filme concorre em seis categorias do Oscar 2023: Melhor Filme; Melhor Atriz para Cate Blanchett; Melhor Direção para Todd Field; Melhor Roteiro Original; Melhor Fotografia e Melhor Edição. Entre os prêmios que recebeu, destaque para o prêmio de Melhor Atriz para Cate Blanchett no Prêmio BAFTA; para os prêmios de Melhor Atriz para Cate Blanchett e Melhor Trilha Sonora conferidos pelo Critics Choice Awards; para o Globo de Ouro de Melhor Atriz – Drama para Cate Blanchett; para o prêmio de Melhor Roteiro nos Prêmios Gotham; e para o prêmio de Melhor Atriz para Cate Blanchett no Festival de Cinema de Veneza.

Para quem teve curiosidade sobre os locais em que o filme foi rodado, Tár teve filmagens nas cidades alemãs de Dresden, Berlim e Potsdam; no Carlyle Hotel, em Nova York; e em Bangkok, na Tailândia.

Agora, vale citar algumas curiosidades sobre a produção. Para interpretar a protagonista de Tár, Cate Blanchett reaprendeu a tocar piano, aprendeu a falar alemão e a reger uma orquestra. A atriz foi preparada para o papel pelo pianista húngaro e professor da Academia Húngara de Música, Emese Virág.

A violoncelista profissional Sophie Kauer, que interpreta a personagem de Olga, nunca tinha atuado antes. Ela fez o teste para o papel por incentivo de um amigo e diz que aprendeu a atuar “assistindo a tutoriais do YouTube apresentados por Michael Caine”. Querem algo mais típico das novas gerações? Aprender algo assistindo a tutoriais do YouTube? Achei curioso – e um tanto cômico. Sinal dos nossos tempos atuais, realmente.

Os gritos que Lydia Tár ouve quando está correndo no parque próximo de uma floresta reproduzem o áudio da atriz Heather Donahue no filme The Blair Witch Project.

O diretor e roteirista Todd Field escreveu Tár pensando em Cate Blanchett. Ele disse que não teria feito o filme sem ela.

As cenas da orquestra tocando são 100% reais. Mas, diferente do que o roteiro do filme sugere, que Tár estaria regendo a Orquestra de Berlim, Cate Blanchett estava regendo a Orquestra de Dresden.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Quando o guia turístico diz para Tár que ela não pode mergulhar no rio que eles estão percorrendo de carro porque ali existem muitos crocodilos, fruto de uma “importação” dos animais que ocorreu em um filme de Marlon Brando, ele está se referindo ao filme Apocalypse Now, que foi rodado nas Filipinas.

Toda a sequência de Tár dando aula na Escola Juilliard foi filmada em uma sequência única, ou seja, sem cortes.

Cate Blanchett se inspirou na voz da crítica Susan Sontag para “criar” a voz culta e “falsificada” de sua personagem neste filme.

O roteiro de Tár foi escrito durante 12 semanas no início da quarentena de Covid-19. O compositor John Mauceri trabalhou como consultor do filme, ajudando Field, em especial, com os comentários de Tár sobre música clássica e diversos músicos.

Em uma conversa entre os personagens Lydia Tár e Andris Davis, o veterano cita vários maestros que foram questionados por terem tido “más condutas”, apesar de terem um trabalho reconhecido. Ele cita nomes como ‘Jimmy’ (James) Levine, principal maestro do Metropolitan Opera entre 1972 e 2018, que foi demitido neste último ano após várias acusações e uma investigação envolvendo agressão sexual; Charles Dutoit, maestro que foi acusado, em 2017, de múltiplas agressões sexuais nas décadas anteriores; e Wilhelm Furtwängler, regente principal da Filarmônica de Berlim entre 1922 e 1945 e que foi acusado de ter ficado na Alemanha e ajudado na imagem do regime nazista durante o período da Segunda Guerra Mundial. Pesquisando sobre Furtwängler, já que o tema é polêmico, achei este texto interessante da Revista Cult sobre ele.

Em uma entrevista para o site GoldDerby em 2022, Todd Field comentou como foi retornar para os cinemas após uma ausência de 16 anos – o último filme dele lançado neste formato foi Little Children, em 2006. Segundo o diretor, a primeira cena que eles filmaram foi uma sequência que ocorre após o primeiro ensaio da última peça de Mahler. Na cena, estavam Cate Blanchett, Nina Hoss e Noémie Merlant. “Eu me lembro daquela primeira tomada, que simplesmente me deixou sem fôlego, porque isso faz parte do cinema… é a parte mágica do cinema. Está além da câmera, além da iluminação, além da sua escolha de lente, além de tudo – direção de arte e tudo mais. São seres humanos na frente de uma câmera que podem fazer coisas mágicas. E essa parte parecia um retorno ao lar muito atrasado”. Achei fofo.

(SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Agora, uma curiosidade que tira uma dúvida que Tár deixou para mim – não sei se para vocês também. No voo para Berlim, Lydia Tár abre um presente de Krista, que é o romance Challenge, de Vita Sackville-West. No livro, que é baseado na vida real da autora britânica, cujo nome real era Victoria Mary Sackville-West, ela inverte seu gênero e se retrata como homem. Pouco depois dessa sequência, a protagonista aborda Johanna (Alma Löhr), colega da filha dela, Petra, que está fazendo bullying com a menina, apresentando-se como o pai de Petra. Ligação interessante e mais uma de diversas entrelinhas e referências desta história.

Achei curiosa a leitura de Cate Blanchett sobre sua personagem. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Segundo a atriz, “Tár fala de um momento da vida de uma mulher que está se movendo inexoravelmente, como todos nós, em direção à morte. E tentamos fugir disso – tentamos superar os lados intragáveis de nós mesmos. Nós tentamos nos esconder”.

Algo curioso e que passaria despercebido pela maioria de nós se não fossem as “notas de produção”. De todas as músicas que Lydia Tár rege durante o filme, apenas uma foi composta por pessoas pretas: a última que vemos no filme, tema do videogame Monster Hunter, que foi composta por Akihito Narita, Zhenlan Kang, Yuko Komiyama e Tadayoshi Makino. Essa questão faz um paralelo direto com a discussão que Tár teve com o aluno da Juilliard.

Para quem, como eu, assistindo Tár ficou em dúvida se a personagem de Lydia Tár é real, ela não é baseada na história de uma regente específica. (SPOILER – não leia… bem você já sabe). Apesar disso, há diversas semelhanças entre alguns aspectos da vida de Tár e da regente Marin Alsop – as duas são regentes pioneiras em uma profissão em que as mulheres ainda são minoria; ambas são lésbicas assumidas e casadas com músicas; ambas teriam sido orientadas profissionalmente por Leonard Bernstein – ainda que Tár, na verdade, não tinha idade para ter passado por isso e o diretor e roteirista admitiu que ela não foi pupila de Bernstein. Apesar de terem questões em comum, o filme não agradou Marin Alsop. Ela ficou, como eu, incomodada com algumas questões. Vou reproduzir uma fala de Marin Alsop sobre o que ela achou de Tár: “Tantos aspectos superficiais de Tár pareciam se alinhar com minha vida pessoal. Mas assim que eu vi o filme, isso já não me preocupava, porque me ofendi como mulher, fui ofendida como maestrina e como lésbica. Ter a oportunidade de retratar uma mulher nesse papel e torná-la uma agressora, para mim, foi de partir o coração. Acho que todas as mulheres e todas as feministas deveriam se incomodar com esse tipo de representação. Existem tantos homens, homens reais, documentados, nos quais este filme poderia ter sido baseado, mas, ao invés disso, coloca uma mulher nesse papel, mas dá a ela todos os atributos desses homens. Isso parece anti-mulher. Supor que as mulheres se comportarão de forma idêntica aos homens ou ficarão histéricas, loucas, insanas, é perpetuar algo que já vimos no cinema tantas vezes antes”. Olha, não posso discordar totalmente do que ela disse… entendo a escolha do diretor porque ele queria, a todo custo, trabalhar com Cate Blanchett, mas, de fato, não faz muito sentido não ter um homem como protagonista de uma história como esta, de um “predador sexual” – não que mulheres não possam fazer este papel, mas elas são minoria.

Ao entrevistar Cate Blanchett e Todd Field no programa Fresh Air, da National Public Radio, Terry Gross leu a declaração de Marin Alsop e perguntou para o diretor e roteirista o que ele achava sobre o que a maestrina falou. Ele disse que achava uma declaração incrível, que apreciava o que ela falou. Vou reproduzir a parte que mais interessa do que ele disse – e que tem a ver com a visão de Field sobre a história: “(o filme) é sobre um personagem e é sobre a força corruptora da natureza. Infelizmente, acredito firmemente que quem quer que detenha o poder, vai acabar sendo corrompido. Quero dizer, isso é apenas um fato infeliz. Somos parte animal. Você sabe, às vezes o animal assume nossos melhores anjos”. Segundo o diretor, ele conversou também com muitas maestrinas que amam o filme “por causa das conversas que ele inspira”. Entendo este outro lado também. De fato, o filme é complexo, mas levanta diversos debates interessantes.

Os usuários do site IMDb deram a nota 7,5 para Tár, enquanto que os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 295 críticas positivas e 29 negativas para a produção – o que garante para o filme um nível de aprovação de 91% e uma nota média de 8,3. O site Metacritic, por sua vez, apresenta um “metascore” de 92 para Tár, fruto de 56 críticas positivas e de três críticas medianas, além do selo “Metacritic Must-see”.

De acordo com o site IMDb, Tár teria custado cerca de US$ 35 milhões. Conforme o site Box Office Mojo, o filme faturou, nas bilheterias, quase US$ 19,4 milhões, sendo US$ 6,7 milhões apenas nos cinemas dos Estados Unidos. Ou seja, se olharmos apenas para o resultado do filme nos cinemas, ele está dando prejuízo… Certamente a temática de Tár não chama a atenção do “grande público”. Pena.

CONCLUSÃO

Mais uma bela interpretação da grande Cate Blachett. Tár é um filme que a atriz carrega nas costas, até porque a história está toda centrada nela. A música é um elemento importante da produção, assim como o desenvolvimento dramático da trama. No início, parece que a história vai ter um desenvolvimento determinado mas, lá pelas tantas, ela muda o compasso e nos surpreende na reta final. Um bom filme, ainda que algumas questões levantadas por ele poderiam funcionar melhor, talvez, com outro protagonista. Claro que, se isso acontecesse, perderíamos a interpretação irretocável de Cate Blanchett. Melhor deixar como está.

PALPITES PARA O OSCAR 2023

Tár era um dos filmes sobre os quais eu estava mais curiosa nesta temporada do Oscar. Primeiro, porque sou apaixonada por Cate Blanchett. A atriz foi e sempre será uma das minhas preferidas – não apenas da geração dela, mas acredito que todas as gerações que eu conferi até o momento. Ela era o maior atrativo do filme para mim. Mas, quando eu soube que Tár tratava sobre a história de uma compositora e regente admirada, o que significa conferirmos um bocado de música clássica em cena, esse virou um outro atrativo.

Como comentei antes, Tár chega ao Oscar deste ano com seis indicações. Segundo as bolsas de apostas do Oscar, a melhor chance do filme é na categoria Melhor Atriz, com Cate Blanchett tendo grandes chances de levar mais uma estatueta dourada para casa. Caso isso se confirmar, esse será o terceiro Oscar que a atriz vai ganhar na carreira – ela ganhou o prêmio em 2013 como Melhor Atriz por Blue Jasmine (filme com crítica disponível por aqui) e em 2004 como Melhor Atriz Coadjuvante por The Aviator.

Interessante ponderar que, se ganhar com Tár, esta será apenas a segunda vitória dela na categoria Melhor Atriz. Ela perdeu o Oscar como Melhor Atriz em três ocasiões: em 1998 com Elizabeth; em 2007 com Elizabeth: The Golden Age; e em 2015 com Carol (filme com crítica neste link). Ela ganhou um Oscar como Melhor Atriz Coadjuvante, como citei antes, mas perdeu estatuetas douradas na mesma categoria em outras duas ocasiões: em 2006, por Notes on a Scandal; e em 2007 por I’m Not There.

Francamente, como eu considero Cate Blanchett uma das melhores atrizes de sua geração e a colocaria, possivelmente, na lista das 50 melhores de todos os tempos, acho sim que ela merece ganhar esse Oscar. Verdade que eu preciso assistir ainda às outras atrizes nesta disputa, mas se eu for comparar a interpretação dela com sua principal concorrente no Oscar deste ano, a atriz Michelle Yeoh, de Everything Everywhere All at Once (filme comentado por aqui), com todo respeito ao trabalho de Michelle Yeoh, que tem um belo desempenho no principal candidato ao Oscar deste ano, ainda prefiro o trabalho de Cate Blanchett, que me parece muito mais visceral, cheio de nuances, sutileza e complexidade, tudo ao mesmo tempo e em diferentes momentos do filme.

Enquanto Cate Blanchett ganhou prêmios importantes, como o Critics Choice Awards e o Globo de Ouro deste ano, Michelle Yeoh surpreendeu ganhando o Screen Actors Guild Awards – o prêmio mais importante entregue pelos atores e, normalmente, considerado uma prévia do Oscar. Talvez por isso, nas últimas semanas, Michelle Yeoh passou na frente de Cate Blanchett nas bolsas de apostas. O páreo está acirrado, sem dúvidas. Antes, Cate Blanchett era considerada a favorita. Agora, nem tanto.

Caso Cate Blanchett não levar o Oscar de Melhor Atriz para Casa, é bem possível que Tár saia do Oscar deste ano de mãos vazias. Francamente, não vejo Tár com chances de ganhar nas categorias Melhor Filme, Melhor Roteiro Original, Melhor Edição ou Melhor Direção. Na categoria que o filme ainda poderia ter alguma chance, que é Melhor Fotografia, ele aparece muito atrás do favorito Im Westen Nichts Neues (com crítica neste link), que realmente tem uma fotografia mais complexa e impactante, e do segundo mais apostado, Elvis.

Assim, meu palpite é que Cate Blanchett possa surpreender e, mesmo Michelle Yeoh tendo ganho o prêmio dado pelos atores e atrizes, mesmo grupo que define quem leva o Oscar, ela possa levar o prêmio para casa. Se não ganhar, será uma pena, e provavelmente Tár será um dos grandes derrotados da noite.

Por Alessandra

Jornalista com doutorado pelo curso de Comunicación, Cambio Social y Desarrollo da Universidad Complutense de Madrid, sou uma apaixonada pelo cinema e "série maníaca". Em outras palavras, uma cinéfila inveterada e uma consumidora de séries voraz - quando o tempo me permite, é claro.

Também tenho Twitter, conta no Facebook, Polldaddy, YouTube, entre outros sites e recursos online. Tenho mais de 25 anos de experiência como jornalista. Trabalhei também com inbound marketing, professora universitária (cursos de graduação e pós-graduação) e, atualmente, atuo como empreendedora após criar a minha própria empresa na área da comunicação.

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